Tuesday, October 24, 2006

Quando nada é belo


Os olhos do moleque fitavam o alto do Teatro Castro Alves. Olhos pretos e redondos, fixos no alvo, concentrados feito olhos de uma águia em sua presa. Sua mãe estava no chão, enrolada em panos, com outra criança ao peito. Era final de tarde e um vento frio escorregava entre os corpos.
Na praça do Campo Grande as árvores são frondosas, grandes, imponentes feito os prédios e casarões que as cercam. Há uma miserabilidade que convive com o luxo naquele lugar. Tudo é indecifrável. Pessoas bonitas em carros importados passam por ali enquanto velhos e mendigos compartilham generosamente bancos e chão da praça. Há um peso ali. Uma melancolia, um desalento, uma feiúra.
Eu sentei por algum momento em um daqueles bancos. Junto ao meu pé esquerdo, uma folha seca e amarelada de outono flutuava sobre uma pequena poça d’água. Um senhor, ao meu lado, lia um jornal amassado. O menino continuava olhando pra cima enquanto o outro tentava sugar o leite que a natureza se encarregava de suprir. Ali tudo é lento. Há um clamor ali. Um clamor de gente miserável que acorda, sobrevive e dorme ali. Uma solidão. Um desamparo.
Começou a chover. Um chuvisco fino e fraco, que deslizava pelas folhas, pelo vidro dos carros, e deixava a calçada brilhando feito as estrelas que mais tarde surgiriam. O céu foi escurecendo. Nuvens iam ficando cada vez mais densas e escuras como que se harmonizando com toda aquela apatia. Um cachorro vira lata latia no meio do asfalto molhado e os carros começaram a buzinar, uma após o outro, impacientes, apressados. A luz vermelha do semáforo agora reluzia com mais intensidade diante da noite que caia. Fui embora.
No caminho, lembrava dos olhos daquele povo que são sempre olhos que pedem. Sempre um olhar de quem carece de algo. Aquelas crianças de dois ou três anos correndo nuas naquele frio. Aquelas mulheres jogadas no chão. Aquele fedor, aquela imundície. Ecoava ainda em meus ouvidos a gargalhada de alguns homens que bebiam e jogavam dominó. Uma gargalhada solta, ressoante, que no fundo desdenhava das mazelas da vida e comemorava o triunfo de estarem vivos.
Ali, a feiúra vê a beleza e não pode jamais tocá-la. Ambas convivem, mas não se pertencem. Nenhuma das duas suporta uma a outra. Há uma mistura de passado com futuro, de progresso com atraso, de mentiras com verdade, de docilidade com crueldade.
Não. Nada ali é belo.

Sunday, October 22, 2006

As moscas e a poça

Nuvens brancas no céu. Daquelas fofas e grandes que pensamos, quando crianças, ser de algodão e um céu azul, aquele azul claro que tentamos penetrar com os olhos em busca do infinito. Dentro do ônibus, misturavam-se cores contrastantes. O verde esmeralda dos olhos da moça lá na frente com sua blusa cor-de-rosa e cabelos loiros molhados e a sujeira preta dos pés do menino que vendia balas de gengibre a gritos. Ônibus são verdadeiros centros de complexidade sócio-visual. Existem, de fato, essas discrepâncias coexistindo que se vê poucos lugares. Um bêbado desdentado-barbudo-bafudo-grudento com sovaco fedorento ao lado de uma Lady (de capa de revista) com aromas de perfume francês. Natural, como o semáforo vermelho, os idosos sentados lá na frente, os pré-adolescentes ultrapassando gargantalmente os decibéis permitidos por lei, o cobrador com cara de ressaca, o motorista querendo atropelar o mundo e os estudantes inclinando seus livros na cabeça dos privilegiados sentados. Os ônibus, além disso, trazem consigo uma contradição intrínseca. São chamados de coletivos, mas a verdade é que não há nada mais individualista. Mas, volto às cores. E nesta manhã, as cores eram vibrantes. Do lado de dentro, o amarelo do vestido da menina de braço. Do lado de fora, moscas ao redor de uma poça. O dia estava suave. A luz do sol estava suave e se via partículas de poeira quase invisíveis a dançar no ar. Alguns homens do lado de fora se aglomeravam em círculo. Um pombo assistia a tudo no fio do poste. As lojas estavam abertas com vendedores ávidos por ganhar dinheiro. Os carros seguiam seus destinos. A mulher sentada ao meu lado, com óculos castigantes, dormia com um livro de romances sobre a perna. Haveria falta de romance na terra dos viventes? Eu pensava no meu futuro, pelo menos, no dia de amanhã. O que poderia haver contra o amanhã? Moscas. As moscas naquele dia seriam a negação do amanhã. Moscas girando em torno de uma poça. Meu olhos automaticamente se viraram para frente, pra onde havia futuro, porque se negavam a contemplar a dança das moscas. Não seria possível. Aquele dia, mesmo com todas suas contradições, mesmo com todas suas cores discrepantes, mesmo com mendigo fedorento ao lado de Lady de capa de revista não deveria caber mais nada.
Voltei meus olhos para o romance das pernas. A senhora dormia. Com que sonhava? Estava cansada. O pombo continuava no mesmo lugar. O menino dos gengibres parou de gritar. O semáforo continuava vermelho nos forçando a continuar parados no tempo. O motorista limpava o suor da testa. A menina lambia seu doce pirulito e as moscas continuavam rodopiando. A essa altura não me importava mais se ônibus era um transporte coletivo ou se funcionava como instrumento reforçador de uma sociedade capitalista. Senti um embrulho no estômago.
Uma senhora religiosa baixou a cabeça num ato de oração. Cheguei a duvidar se haveria amanhã. Os odores, cores, cabelos, roupas, livros, bolsas, azul do céu e verde esmeralda, tudo agora se misturava num tornado em minha cabeça.
O semáforo abriu.
À frente, o futuro.
Atrás, uma senhora. Deitada num asfalto quente, com os braços estendidos, com a cabeça numa poça, moscas dançando e o pombo que a tudo assistia.