Thursday, June 11, 2009

no colo

Tremeu ao tocar a maçaneta. As lágrimas haviam feito caminho ao longo do corredor. Ao abrir a porta, a claridade que vinha da janela de frente lhe confundiu a vista. Desviou o olhar para as outras paredes, e agora as imagens dos quadros se desprendiam e formavam vultos a dançar no meio da sala. Figuras de homens sóbrios, paisagens bucólicas, pinturas incompreensíveis a vagar sem rumo diante da menina. Deslizou o dedo no canto dos olhos e correu para o colo da tia. Era tia Lena, uma senhora gorda e afável. O rosto preservava sempre uma expressão de riso e nos seus braços, Juliana encontrava toda a candura e compreensão do mundo. Não importava quantos nem quais tipos de erro a menina tivesse cometido. Nos braços de tia Lena, o mundo se tornava acolhedor. A menina se esparramou em seu colo e agora chorava mais. Tia Lena não lhe fez perguntas. Passou o dedo na testa da menina desviando os cabelos que lhe caíam sobre os olhos. A menina apertou os olhos e abraçou mais forte a tia. Juliana era uma menina magra e branca, branca como se nunca tivesse conhecido o sol. Gostava de vestir roupas coloridas e nesse dia, vestia uma blusa laranja com o desenho de um sol gigante. O sol, naquela tarde, não estava lá fora, para além da janela, e o que estava dentro, era respingado pelas lágrimas da menina. A tia ajeitou a menina no braço, enxugou-lhe o rosto e perguntou o que havia acontecido. A menina começou a soluçar e não respondeu. Fez apenas uma cara de dor. O colo estava quente e macio. Na mente de Juliana, repetições da cena. Palavras duras, dedos apontados. Amor banhado a dor. Os minutos foram passando. O tempo e o colo traziam o consolo. O colo de tia Lena era o melhor lugar no mundo para se estar naquele momento de sol banhado a lágrimas. Não haveria no mundo lugar melhor.

Friday, December 12, 2008

na varanda

Ele contava uns setenta e três anos e deixou-se encostar na cadeira de balanço na varanda de casa. A casa ficava num sítio e, do lugar onde estava, ele via pés de manga ao longe. A tarde estava muda. Só se ouvia um barulho suave do vento escorregando entre as árvores. O céu estava meio apagado e a terra ainda estava escura do chuva que caíra de madrugada. Seu Antônio pegou o copo de café e deu uma golada. Fez isso e depois tentou sentir o sabor batendo com os lábios frouxos. Encostou a cabeça na cadeira e esticou as pernas por cima do batente. Vestia uma calça social velha e calçava sandálias de couro muito pisadas. Olhou pro céu com aquele olhar opaco e quebrado que quase lacrimeja. Tentou puxar lembranças. Fez algum esforço, respirou fundo. Ouviu um barulho de pratos que vinha de dentro da casa. Ele sabia que era a mulher que cuidava. O vento continuava brincando entre as árvores e um outro vento frio entrou de repente na varanda, deslizou no pescoço do velho e foi-se embora. Ele tocou de novo no copo, mas dessa vez não bebeu. Fechou os olhos. Fechou os olhos e mais uma vez respirou fundo. Ouviu o sapo dizer algo, mas não entendeu. Era o velho sapo de toda tarde. Já estava agora grande e gordo. Talvez fosse um sapo também já velho. O sapo tentava puxar assunto com o velho. Mas o velho não lhe dava atenção. Mas ele continuava ali, fazendo companhia ao velho como se gente também fosse. A mulher veio até a janela e viu o homem quase dormindo. Fechou a janela, enrolou um pano no pescoço e seguiu para a cama arrastando as sandálias. O tempo fechava mais. O velho agora ouvia o barulho das gotas de chuva caindo sobre o telhado. Abriu os olhos devagar, tão devagar quanto o movimento preguiçoso de um sol nascente. As gotas iam ficando cada vez mais grandes e pesadas e o barulho sobre o telhado aumentava ainda mais. O velho então puxou as pernas de volta, apoiou a mão trêmula na bengala marron e fez menção de que ia levantar-se. Respirou fundo e encostou-se novamente na cadeira. Decidiu olhar pra chuva. Aquele banho que as nuvens davam na terra. O velho riscou um sorriso. Talvez tenha lembrado de algo. Começou a cantarolar. Uma música velha dos tempos de quando era ainda moço. Começou a cantar, mas cantava baixinho, no ritmo do goteira que caia na varanda. O sapo então começou a cantar junto. E agora cantavam o velho, a chuva e o sapo. O vento que passava por ali, roubava trechos da melodia e a espalhavam sítio a fora, na direção das nuvens. Os galhos das árvores agora dançavam ao som da melodia do velho e as nuvens passaram a chover a mesma melodia. O velho agora se sentia melhor. Aqueles sons beliscavam seu espírito e ele sentia cócegas na alma. Riscou um sorrido mais forte. Algum tempo depois, um raio de luz rompeu nuvens escuras e bateu em cima da varanda do velho. O velho gostou de ver novamente a luz do sol e levantou-se. Levantou-se, aprumou a coluna, e seguiu para o quarto. Depois desse dia, nunca mais imaginou barulho de pratos dentro de casa.

Thursday, August 14, 2008

Esquina e charuto

O velho apertava os olhos, protegendo-os da luz do sol que parecia apontar apenas em sua direção. Deslocou-se, pondo a mão sobre a do rapaz que o acompanhava à mesa e o chamou com ânimo:
- Olhe ali, do outro lado, na calçada!
O menino, num susto, ergueu os olhos que estavam voltados pro livro, um livro sobre antigos povos da Babilônia, e voltou a cabeça pra onde o velho apontara.
- O que? – Perguntou o rapaz.-
Aquela menina. Está vendo? – continuou falando em voz baixa, mas num tom vibrante.
- Sim, estou vendo – retrucou o rapaz, com expressão de impaciência.
O velho então parou. Parou e deixou, por instantes, o olhar se perder no espaço. A claridade do sol, agora, parecia não incomodá-lo mais. Aos poucos, foi abandonando a mão do rapaz e se encostando de volta na cadeira.
- Seus passos... seus passos eram tão leves. - Disse com certo deslumbramento.
E, novamente:
- Muito leves... – só que, desta vez, parecia estar falando pra si mesmo, suspirando.
- A leveza de espírito afeta a lei da gravidade? – perguntou o velho ao menino.
- Por acaso a leveza de espírito interfere no peso dos corpos? – insistiu o velho.
- Não, meu avô. - Respondeu o rapaz com olhar confuso. É evidente que não e o senhor deve saber isso.
- A ciência já examinou isso, meu filho? - Insistiu mais uma vez o ancião.
- Não haveria motivos para tal, meu avô. – Respondeu achando graça, pois, agora, entendia que o velho o provocava.
O homem voltou o olhar para a menina que agora já estava distante.
Um pouco à frente, uma esquina cruel roubara-lhe a pequenina de andar leve e cabelos longos e encaracolados.
Não deveria de haver esquinas, já que sempre nos roubam o olhar infinito. - Questionou o velho em pensamento.
Mas quando as coisas nos fogem dos olhos, a memória nos serve. E o velho via novamente aqueles passos leves, aquele corpo pequenino, aquela mão frágil segurando a da mãe. Cabelos encaracolados que se moviam conforme as vontades do vento.
O velho pegou de volta o charuto e permitiu ao menino voltar-se ao livro.
Bafejou, com o desleixo de sempre, aquela fumaça densa, mas tão leve feito os pés da menina.
E, silenciosamente, disse:
- Interfere meu filho. Interfere.

Sunday, July 27, 2008

Dedos e pés

Seus dedos arrastavam uma leve poeira enquanto procurava o velho disco na estante da sala. Ela tinha uma radiola velha e era nela que ouvia as músicas que amava. Não era difícil encontrar. Tinha poucos. Naquela tarde, como nas outras, ela, cuidadosamente, tomou o disco nas mãos. Embora velho, sempre fora muito bem guardado e estava com poucos arranhões. Pegou-o e o levantou na altura do rosto, como se segurasse um espelho. Aquele plástico preto refletia alguma coisa, uma imagem borrada, mas não sei se ela buscava o desenho de seu rosto. Naquele dia, acho que buscava no reflexo do disco alguma lembrança, algo mais profundo. Soprou-o levemente para que saísse um resto de poeira e abriu a tampa do som. Sua mão esquerda tremia um pouco quando o posicionou para tocar. Puxou a agulha, era a faixa três. Ela sabia de cabeça. Olhou para as janelas que estavam abertas para uma tarde luminosa e fria, daquelas de inverno ameno. O céu estava claro e algumas crianças corriam na rua. As pessoas resolviam coisas lá fora. Muitas, estavam ocupadas com coisas sérias. Mas aquela mulher não tinha, naquele dia, problemas a resolver e então quis dançar. A música começou a tocar e passos começaram a correr no centro da sala. Movimento leve de pés soltos ao ar. Abria os braços. Rodava. Colocava as mãos sobre o peito, uma sobre a outra, e depois as estendia, como se estivesse oferecendo ao mundo seu coração. Fechava os olhos. Os lábios riscavam um leve sorriso. A música, que lhe penetrava a alma, roubava-lhe o peso do corpo. Então, não havia mais peso, não havia mais corpo. Apenas uma mistura de sons, sensações e lembranças que decidiram dançar juntos. Aqueles sons...aquelas memórias...Ela não estava mais ali. Estava num outro lugar onde tudo acontecia como deveria sempre ser. Aquela música tinha algum poder que ela desconhecia. Só sabia que quando a colocava, sentia-se mais leve, não pensava em mais nada, apenas fluía. Minutos depois, um barulho forte veio lá de fora. Começou a sentir sua respiração. Estava voltando e a pele começara a transpirar. Vagarosamente, foi abrindo e correndo os olhos pelas paredes amarelas da sala como que buscando algum vestígio do lugar onde estivera. Mas tudo estava como antes e, estranhamente, não estavam dançando feito ela. Por que aqueles objetos sempre estavam parados nos seus lugares? Será que não sentiam vontade de dançar também? Foi parando, parando...parou. Guardou o disco novamente. Da próxima vez, ela veria as paredes dançarem também.

Primavera francesa

Um vento frio de início de primavera que passeava pelo lado de fora decidiu, abruptamente, já que não lhe restava mais nada a fazer, penetrar em nosso ambiente devidamente restrito. Um frio quase gélido, a deslizar suavemente e sorrateiramente por entre nossos corpos - quase - imóveis. Minha língua se deliciava em porções de sorvete que eu lhe oferecia num ato generoso e ela ficava exuberante com isso. Se tivesse rosto, estaria fazendo aquela cara de criança quando recebe presente, com um sorriso largo e braços abertos. Ao mesmo tempo, meus olhos se atiravam ao colorido instigante de todas as fotografias e signos lingüísticos que compunham as capas de revista. Passear os olhos sobre capas aglomeradas numa loja é sempre um exercício de intenso estímulo sensorial. Destacando-se aí as mulheres bonecas, sempre perfeitas. Há, de fato, uma competitividade gritante entre elas. Se Éris, a deusa encrenqueira da Guerra de Tróia, surgisse por acaso ali para oferecer seu pomo de ouro “à mais bela”, penso que todas elas saltariam de suas respectivas capas e se engalfinhariam ali mesmo, ainda que isso lhes custasse o triscar de um cílio a borrar a maquiagem de suas bochechas rosadas.
Mas não há apenas estímulos puramente sensoriais. Podemos sentir, sem dúvida alguma, cócegas no intelecto e essa experiência é um tanto divertida pra mim e pra todos aqueles que têm, por algum motivo até hoje não explicado, essa forte inclinação irracional para a racionalidade da leitura. Afinal, justifique-se, não é em qualquer lugar que achamos reunidos, literalmente, no mesmo tempo e espaço figuras ilustres como Freud, Marx e Aristóteles, sentados generosamente em prateleiras bastante incômodas à espera do próximo curioso que irá dirigir-lhes em pensamento questões existenciais que eles já morreram de pensar. Mas podemos simplesmente reunir dois fenômenos fantásticos, como, por exemplo, bater um papo com Freud (mesmo num divã improvisado) e logo depois alojar o nosso “id” numa prateleira que trate de questões como: “seja feliz no casamento”, “como se livrar de sua sogra”, ou “como ficar rico em cinco dias”.
Logo ali do outro lado, pude ver uma adolescente branca feito a boneca de porcelana de minha avó e magra feito um lápis, sentada numa pequena cadeira, extremamente concentrada, diga-se, e que se inclinava sobre um livro cujo título era “antiga arte hindu do prazer e do êxtase”. Absolutamente estática, apoiando seu queixo fino em seus dedos polegar e indicador direitos, mergulhava seu olhar, através de suas límpidas e finíssimas lentes oculares, naquelas figuras geométricas, reveladoras dos métodos mais empolgantes de nosso exercício vital.
Observe-se que ainda não havia chegado o verão e corria um vento quase gélido entre nossos corpos quase imóveis.
Foi quando o sorvete acabou e me livrei do ar-condicionado.

Clara

A luz fina da lua refletia-se no olhar singelo de Clara, cinco anos, cabelos finos e loiros atiçados ao vento numa noite de natal indócil. Uma mão pequena e macia protegia-se na aspereza de uma mão calejada. Silêncio. A roda gigante não parava de rodar e os olhos de Clara, fascinados com todas as cores e luzes acompanhavam todo o movimento harmonioso e suave.
A menina fez impulso para frente, buscando alcançar de repente, imediatamente, as cadeiras que rodavam e já se sentia sentada numa delas. Entretanto, a mão firme, grossa, com dedos grandes a manteve no mesmo lugar, agora parada, sem saída. Clara ouvia risos que vinham de longe de outras crianças, confundiam-se com as músicas, com o assoviar do vento, com as vozes embaralhadas dos adultos, com o latido do cão da praça. De um lado, bexigas com cara de desenhos animados, do outro, algodão doce azul e amarelo. A lua continuava a beijar os olhos da menina e o vento a girar as crianças sorridentes da roda gigante. Pés sujos pequeninos em sandálias de dedo velhas. Os olhos de Clara eram claros e redondos com pálpebras que não piscavam e lá dentro via-se cada cadeira colorida girando, girando... girando... brilhando à luz da lua, misturando-se ao brilho natural de seus olhos. As estrelas também piscavam, mas do outro lado uma nuvem cinzenta e densa aproximava-se da lua. Aquela noite não seria de Clara. Enquanto outras crianças comiam suas maçãs do amor e divertiam-se nos brinquedos, ela abraçava a roda gigante com o desejo. A nuvem cinzenta, então, roubou toda a claridade, encobrindo a lua e deixando os olhos da menina agora apagados. As pálpebras renderam-se ao chão. Um choro de criança pequena do outro lado, o latido interminável do cachorro da praça, a buzina irritante do pipoqueiro, o vento cortado pelo tiro seco do homem que tentava derrubar o maço de cigarros. O céu ficou escuro, a roda gigante não rodava mais. Sentado num banco sozinho, um velho com cara enrugada, calça social e chinelos, fumava um cigarro de palha e abria um sorriso para a menina. Aquele sorriso banguelo que apertava os olhos parecia traduzir memórias saudosas que se misturavam aos bafos de cigarro e se perdiam no espaço. Fumaça de cigarro, nuvem cinzenta, sorriso banguelo.
Clara, agora, caminhava lentamente de volta pra casa apertando a mão embrutecida que a segurava e deixava pra trás todas as cores apagadas. Estas, no entanto, voltariam a reluzir mais tarde em sonhos que ela construiria.
Em casa, um bolso vazio de uma calça velha jogava-se sobre a cadeira do cômodo-casa, um café amargo aquecia a garganta do homem e Clara no quarto, deitada sob lençóis finos, com olhos apontados para as estrelas de sua janela, andava de roda gigante.

Sunday, May 27, 2007

Olhos fechados

Olhos fechados, porque não quero ver luzes amarelas de postes solitários em noite de asfalto preto e molhado, deslizante de respingos de pranto de céu sem estrelas engolido por águas de mar escuro. Vento veloz em meu rosto me carrega pra onde não existe tempo nem fim. O caminho é infinito quando se fecham os olhos. Por que não quero ver borrão de casas velozes passantes em janela de vidro, nem vermelho e amarelo, nem meninas perdidas ao sabor do vento úmido com cristais de sal que embaçam minhas lentes. O mundo é livro de capas fechadas quando se fecham os olhos, e não quero atingir águas de poço profundo porque já tenho sereno suspenso que desce vagarosamente sobre tudo o que não quero enxergar. Passos rápidos em pensamento, porque a estória passou na esquina passada e não pode mais entrar por esta janela que fechei. Estranho silêncio de ruas caladas, todas seguindo caminhos que não quero alcançar. Olhos fechados, porque só quero o peso de minhas pálpebras, não mais o peso de vidas sofridas cheirando à noite cansada, rugas, cabelos brancos, olheiras e desmaio, sentadas em bancos de ônibus mecânicos. Porque aqui, tudo parece mecânico. Olhares mortos, almas vagantes em vagão de ônibus vazio. Não quero esse cansaço, esse olhar penoso que quase não dorme, só quero agora olhos fechados.

Nuvens amarelas

Um instante de palidez, mãos e dedos que se atiram ao vazio de costas que se viram, sem sobras de alma e sombras que transfigurem tua presença. Ponta de dedos incansáveis que não alcançam, e um sopro de vento covarde que levanta fios de teus cabelos aos meus olhos e rabiscam minha face. Passos sem volta, caminho infinito que carrega teus pés a lugares tão distantes que minha imaginação jamais alcançará. Não tem sentido, porque todo o universo agora gira na rotação de um furação e mistura e explode todos os planetas e estrelas de meu céu que acabou de cair, nesse meu instante de palidez, e não tem mais lei que equilibre e recupere, sequer, a órbita de minha via láctea e me faça respirar ar livre de fogo. Respiração, um fôlego assustado, pulmões quase sem ar e nuvens amarelas paralisadas na gravura desbotada de um quadro qualquer. Lentidão, porque não quero perder agora nem as lembranças, e as puxo vorazmente com a memória, esforço inútil. Ah... se pensamentos tivessem mãos, então eu puxaria todas as lembranças perfeitas de meus momentos junto a ti, e as guardaria num baú, todas trancadas, para revivê-las a cada manhã de céu cinzento. Se é o que me resta, retratos de nossas vidas espalhados dento de mim, então juro que meu acordar será sempre um sonho, onde só as lembranças serão reais.

Manhã de sol ocluso

Aqui prostrado, perante um sol que decidiu não nascer esta manhã. Nuvens escuras que carregam ventos gélidos e cortam a alma, deixando-a mais prostrada, quase em migalhas. Porque tuas mãos, singelo sorriso de lábios tênues que rasgam delicadamente teu rosto e olhos translúcidos de infindáveis pensamentos, não se transportam a mim, nesta manhã de sol ocluso. Fico, então, a esperar que um vendaval nascido de detrás das montanhas, veloz e assaltante, possa te roubar onde quer que estejas e te trazer a mim, somente a mim. Mas não ouço tua voz, nem fios de teus cabelos encontro entre meus dedos, nem dançando ao vento, porque a distância do que é concreto ignora a confusão de nossos sentimentos. Quando, então, já existe cheiro e deslizar de dedos em pele macia, mãos quentes, algum suspiro. Quando não há mais sol que se iguale em fulgor e esplendor ao tremeluzir de teus olhos, como diamantes, banhados a respingos de tudo o que sonhas. Quando o dia pode nascer e morrer, e renascer durante duzentos milhões de anos, mas meus passos continuam juntos aos teus e posso contemplar o teu mesmo semblante. Mas quando os pensamentos se perdem no caminho e são levados por tempestades a lugares onde não podem voar, fico imaginando com que asas poderei te alcançar. Meu corpo porém já dói, pés feridos em pedregulhos, e o sol ocluso não me traz sequer memória de algum feixe de luz.

Monday, March 12, 2007

Nublado

Hoje o céu estava nublado. Não, hoje as nuvens estavam escuras porque céu traz idéia de alegria e o dia hoje estava melancólico com andorinhas molhadas nos fios dos postes chorando pela ausência de um céu azul. Poças d'água na rua e a velhinha de sempre com sua sombrinha cor de abóbora, agarrada às suas sacolas plásticas, equilibrando na ponta do nariz seus pesados óculos, pisando com cuidado, parecendo uma lebre frágil e indefesa rodeada por predadores.
Hoje cedo me vi em pé ao lado de um mendigo. Estávamos sob a cobertura de um ponto de ônibus aguardando o chuvisco passar. Ele conversava - quase um monólogo - com uma moça que também estava ali ao lado. Falava num tom grave e firme, gesticulando, arregalando os olhos como se estivesse revelando os grandes mistérios da humanidade. Como se sabe, é comum bêbados e mengidos de vez em quando agirem como profetas, filósofos, coisas desse tipo. E este aproveitou a chuva para fazer algumas revelações. Dizia, entre outras coisas, que na antiguidade havia muitos homens altos, em torno de cinco metros, que construiram as pirêmides do Egito. Homens gigantes também lutaram contra os dinossauros e protegiam os de baixa estatura dos animais e da chuva, levando-os em seus braços para as cavernas. Disse que no Egito antigo já havia computador, bronzeador, protetor solar e as mulheres bebiam caldo de rã pra melhorar a pele. Ele olhava pros pingos d'água caindo em nossos pés e dizia que tudo aquilo era muito bom porque o homem viera da água e, por isso, não podíamos reclamar da chuva. Acho que ele estava um pouco confuso em alguns aspectos. Mas isso não me importou. O importante foi que naquele dia, diferentemente de tantos outros, alguém tinha quebrado toda uma rotina urbana de plena segunda feira com engarrafamento e chuva. Foi engraçado chegar molhado no trabalhado imaginando dinossauros, homens de cinco metros e sopa de rã.

Friday, March 09, 2007

Flores secas

Entrecortada por miúdas e diversas pétalas verde-amareladas que, atrevidamente cercaram-na, apertando-a e comprimindo-a, retirando-lhe a chance de respirar o ar que agora já era pouquíssimo, caminhava em passos frágeis. E, cambaleando, com pés flutuantes e olhar dormente, parou, num instante de inevitável paralisação para sentir o batimento quase morto de um coração decadente. Em degraus que nunca desciam, tropeçava até o momento em que o vento quase furacão lhe roubou todos os pensamentos e lhe fez caveira, com cabelos brancos e secos, buracos de olhos fundos.
Sem saída e sem idéias, quebrou-se. Um estalo de joelhos levou seus finos dedos a esfarelar-se no chão.
E aí, já não havia mais a menina que brincava de soltar ao vento palavras de poesia.