Sunday, July 27, 2008

Dedos e pés

Seus dedos arrastavam uma leve poeira enquanto procurava o velho disco na estante da sala. Ela tinha uma radiola velha e era nela que ouvia as músicas que amava. Não era difícil encontrar. Tinha poucos. Naquela tarde, como nas outras, ela, cuidadosamente, tomou o disco nas mãos. Embora velho, sempre fora muito bem guardado e estava com poucos arranhões. Pegou-o e o levantou na altura do rosto, como se segurasse um espelho. Aquele plástico preto refletia alguma coisa, uma imagem borrada, mas não sei se ela buscava o desenho de seu rosto. Naquele dia, acho que buscava no reflexo do disco alguma lembrança, algo mais profundo. Soprou-o levemente para que saísse um resto de poeira e abriu a tampa do som. Sua mão esquerda tremia um pouco quando o posicionou para tocar. Puxou a agulha, era a faixa três. Ela sabia de cabeça. Olhou para as janelas que estavam abertas para uma tarde luminosa e fria, daquelas de inverno ameno. O céu estava claro e algumas crianças corriam na rua. As pessoas resolviam coisas lá fora. Muitas, estavam ocupadas com coisas sérias. Mas aquela mulher não tinha, naquele dia, problemas a resolver e então quis dançar. A música começou a tocar e passos começaram a correr no centro da sala. Movimento leve de pés soltos ao ar. Abria os braços. Rodava. Colocava as mãos sobre o peito, uma sobre a outra, e depois as estendia, como se estivesse oferecendo ao mundo seu coração. Fechava os olhos. Os lábios riscavam um leve sorriso. A música, que lhe penetrava a alma, roubava-lhe o peso do corpo. Então, não havia mais peso, não havia mais corpo. Apenas uma mistura de sons, sensações e lembranças que decidiram dançar juntos. Aqueles sons...aquelas memórias...Ela não estava mais ali. Estava num outro lugar onde tudo acontecia como deveria sempre ser. Aquela música tinha algum poder que ela desconhecia. Só sabia que quando a colocava, sentia-se mais leve, não pensava em mais nada, apenas fluía. Minutos depois, um barulho forte veio lá de fora. Começou a sentir sua respiração. Estava voltando e a pele começara a transpirar. Vagarosamente, foi abrindo e correndo os olhos pelas paredes amarelas da sala como que buscando algum vestígio do lugar onde estivera. Mas tudo estava como antes e, estranhamente, não estavam dançando feito ela. Por que aqueles objetos sempre estavam parados nos seus lugares? Será que não sentiam vontade de dançar também? Foi parando, parando...parou. Guardou o disco novamente. Da próxima vez, ela veria as paredes dançarem também.

Primavera francesa

Um vento frio de início de primavera que passeava pelo lado de fora decidiu, abruptamente, já que não lhe restava mais nada a fazer, penetrar em nosso ambiente devidamente restrito. Um frio quase gélido, a deslizar suavemente e sorrateiramente por entre nossos corpos - quase - imóveis. Minha língua se deliciava em porções de sorvete que eu lhe oferecia num ato generoso e ela ficava exuberante com isso. Se tivesse rosto, estaria fazendo aquela cara de criança quando recebe presente, com um sorriso largo e braços abertos. Ao mesmo tempo, meus olhos se atiravam ao colorido instigante de todas as fotografias e signos lingüísticos que compunham as capas de revista. Passear os olhos sobre capas aglomeradas numa loja é sempre um exercício de intenso estímulo sensorial. Destacando-se aí as mulheres bonecas, sempre perfeitas. Há, de fato, uma competitividade gritante entre elas. Se Éris, a deusa encrenqueira da Guerra de Tróia, surgisse por acaso ali para oferecer seu pomo de ouro “à mais bela”, penso que todas elas saltariam de suas respectivas capas e se engalfinhariam ali mesmo, ainda que isso lhes custasse o triscar de um cílio a borrar a maquiagem de suas bochechas rosadas.
Mas não há apenas estímulos puramente sensoriais. Podemos sentir, sem dúvida alguma, cócegas no intelecto e essa experiência é um tanto divertida pra mim e pra todos aqueles que têm, por algum motivo até hoje não explicado, essa forte inclinação irracional para a racionalidade da leitura. Afinal, justifique-se, não é em qualquer lugar que achamos reunidos, literalmente, no mesmo tempo e espaço figuras ilustres como Freud, Marx e Aristóteles, sentados generosamente em prateleiras bastante incômodas à espera do próximo curioso que irá dirigir-lhes em pensamento questões existenciais que eles já morreram de pensar. Mas podemos simplesmente reunir dois fenômenos fantásticos, como, por exemplo, bater um papo com Freud (mesmo num divã improvisado) e logo depois alojar o nosso “id” numa prateleira que trate de questões como: “seja feliz no casamento”, “como se livrar de sua sogra”, ou “como ficar rico em cinco dias”.
Logo ali do outro lado, pude ver uma adolescente branca feito a boneca de porcelana de minha avó e magra feito um lápis, sentada numa pequena cadeira, extremamente concentrada, diga-se, e que se inclinava sobre um livro cujo título era “antiga arte hindu do prazer e do êxtase”. Absolutamente estática, apoiando seu queixo fino em seus dedos polegar e indicador direitos, mergulhava seu olhar, através de suas límpidas e finíssimas lentes oculares, naquelas figuras geométricas, reveladoras dos métodos mais empolgantes de nosso exercício vital.
Observe-se que ainda não havia chegado o verão e corria um vento quase gélido entre nossos corpos quase imóveis.
Foi quando o sorvete acabou e me livrei do ar-condicionado.

Clara

A luz fina da lua refletia-se no olhar singelo de Clara, cinco anos, cabelos finos e loiros atiçados ao vento numa noite de natal indócil. Uma mão pequena e macia protegia-se na aspereza de uma mão calejada. Silêncio. A roda gigante não parava de rodar e os olhos de Clara, fascinados com todas as cores e luzes acompanhavam todo o movimento harmonioso e suave.
A menina fez impulso para frente, buscando alcançar de repente, imediatamente, as cadeiras que rodavam e já se sentia sentada numa delas. Entretanto, a mão firme, grossa, com dedos grandes a manteve no mesmo lugar, agora parada, sem saída. Clara ouvia risos que vinham de longe de outras crianças, confundiam-se com as músicas, com o assoviar do vento, com as vozes embaralhadas dos adultos, com o latido do cão da praça. De um lado, bexigas com cara de desenhos animados, do outro, algodão doce azul e amarelo. A lua continuava a beijar os olhos da menina e o vento a girar as crianças sorridentes da roda gigante. Pés sujos pequeninos em sandálias de dedo velhas. Os olhos de Clara eram claros e redondos com pálpebras que não piscavam e lá dentro via-se cada cadeira colorida girando, girando... girando... brilhando à luz da lua, misturando-se ao brilho natural de seus olhos. As estrelas também piscavam, mas do outro lado uma nuvem cinzenta e densa aproximava-se da lua. Aquela noite não seria de Clara. Enquanto outras crianças comiam suas maçãs do amor e divertiam-se nos brinquedos, ela abraçava a roda gigante com o desejo. A nuvem cinzenta, então, roubou toda a claridade, encobrindo a lua e deixando os olhos da menina agora apagados. As pálpebras renderam-se ao chão. Um choro de criança pequena do outro lado, o latido interminável do cachorro da praça, a buzina irritante do pipoqueiro, o vento cortado pelo tiro seco do homem que tentava derrubar o maço de cigarros. O céu ficou escuro, a roda gigante não rodava mais. Sentado num banco sozinho, um velho com cara enrugada, calça social e chinelos, fumava um cigarro de palha e abria um sorriso para a menina. Aquele sorriso banguelo que apertava os olhos parecia traduzir memórias saudosas que se misturavam aos bafos de cigarro e se perdiam no espaço. Fumaça de cigarro, nuvem cinzenta, sorriso banguelo.
Clara, agora, caminhava lentamente de volta pra casa apertando a mão embrutecida que a segurava e deixava pra trás todas as cores apagadas. Estas, no entanto, voltariam a reluzir mais tarde em sonhos que ela construiria.
Em casa, um bolso vazio de uma calça velha jogava-se sobre a cadeira do cômodo-casa, um café amargo aquecia a garganta do homem e Clara no quarto, deitada sob lençóis finos, com olhos apontados para as estrelas de sua janela, andava de roda gigante.