Thursday, November 30, 2006

Paredes surdas

Neste instante prefiro a mudez. A incomunicabilidade dos planetas que congelam sozinhos no infinito das galáxias que explodem. Isto não me interessa. Só a brisa que sopra feito sopro de mãe a franja reta asiática da menina que corre no parque. Quero apenas ser ouvidos surdos de paredes brancas de quartos vazios, mas desejo ouvir dedos hábeis delicadamente no piano a criar sons que deixem nossos travesseiros fofos para um sono profundo de uma noite de estrelas. O discurso não me interessa. Quero apenas a melodia de dedilhadas numa harpa, equilibrando as pontas dos dedos dos pés calejados de uma bailarina. A história não me interessa. Quero ouvir o sonho real que brotou da doce vida das crianças. O futuro, agora não. Só um presente que seja mais que todas as estórias de todos os tempos e de todas as épocas. Não quero a promessa. Só a flor que desabrocha quieta e perfeita no jardim do quintal de minha avó. Não quero esta glória. Só o vento batendo em meu rosto na montanha que desço correndo ainda criança. Não quero caminhos. Só passos soltos e leves, vagabundos, em areia fofa de praia com lua.

Wednesday, November 29, 2006

Borboletas vermelhas

Sentiu que lhe penetrou profundamente o peito e, subitamente, despencou de joelhos no chão, apertando a mão direita no buraco que jorrava sangue. O céu estava límpido. Um vento leve, ameno percorria aqueles caminhos e o sol gigante e amarelo refletia-se no cristal dos olhos das crianças que passavam felizes segurando a mão de seus pais. Aquela bala era maldita. Só poderia ser. Que mal teria feito para merecê-la? Nenhum. Sangue de inocente derramado em vão... Ele simplesmente não entendia. E continuava a pressionar a mão sobre o buraco que parecia a cada segundo tornar-se maior. Sua mão, camisa e calça já estavam pintadas de um vermelho gosmento que respondia também, ironicamente, à luz do sol, tornando-se vivo e brilhante. Olhou para o chão e este seria o seu futuro mais próximo. Um cimento escuro, grosso, pisado por tantos pés, com resquícios de excremento de cachorros vira-latas e pombos. Uma sujeira impregnada, um chão mal varrido, um cheiro de morte. Lembrou da mãe. Ela estava na janela, segurando o queixo com as duas mãos e olhava para o terraço onde os filhos, quando crianças, divertiam-se sujos de areia, peito de fora, joelhos arranhados. Lembrou-se do pai. Um homem que mais parecia a própria enxada com a qual cuidava da terra. Magro, encurvado, velho, sem cor, rígido e sem graça. Olhou agora à sua volta e esqueceu do tempo. Não havia mais tempo porque todos os seus tempos e o do mundo fundiram-se numa sombra de existência que tomara, indevidamente, a liberdade de pertencer a todas as épocas e entender todos os sentidos, e a sorrir todos os sorrisos e a chorar todas as lágrimas que sua alma foi capaz de permitir. O tempo era a vida resumida em lembranças cortadas por artérias secas e embaraçadas com o colorido de borboletas e outdoors que reluziam dramaticamente diante de seus olhos já perdidos. Não haveria nem gotas piedosas de chuva para misturar-se aquele sangue quente que já cobria o chão e fazê-lo menos vermelho, menos verdadeiro, menos brilhante.
Uma fraqueza estremecedora o tomou de vez e, tonto, viu dez planetas com anéis de um azul translúcido girando ao seu redor sem parar com a ajuda dos bafos de ar quente que vinham das águas mornas do mar próximo. Viu figuras jamais vistas. Estranhos desenhos que nem pareciam o céu nem o inferno. Lembrou de poemas, de canções, de estrelas apontadas no céu, de cabelos soltos nos quais se perdia, e da lua sempre calada e branca. Lembrou-se dos pés pequenos e ligeiros, em sapatos engraxados, no caminho da escola. Lembrou-se das cruzes dos cemitérios sombrios e das luzes faiscantes do pisca-pisca de sua árvore de Natal. Quis matar o mundo. Quis salvar o mundo, entretanto, o chão era seu futuro mais próximo e de todas as formas retorcia-se para não ter que beijá-lo. As lembranças e devaneios então, agora se esvaiam, subindo no ar feito fumaça e rapidamente se apagando. Enquanto seu rosto desenhava a dor do fôlego de vida extirpado, seus músculos tornavam-se rígidos, contrafeitos, e suas pupilas despediam-se vagarosamente do esplendor de um sol intenso de um verão que se aproximava.
Passou-se a sombra, e dedos imediatos apontavam um corpo deitado no chão da praça. E ali, não era mais homem.
Não era mais nada.
Apenas o futuro, sujo e vermelho.

Saturday, November 18, 2006

Pedras de sol vermelho.

Gentilmente, pôs o fumo preto e amassado que se equilibrava entre seus dedos trêmulos no meio de seus lábios frouxos e molhados, e cruzou lentamente as pernas feito mulher, trazendo a bainha direita da calça social cinza e suja para a altura da canela magricela e engelhada. Uma tragada forte que lhe roubou as bochechas foi seguida por uma tosse rouca. Baixou os olhos hepáticos para o menino que apanhava pedras no chão. Era um final de tarde comum. O vento balançava o chapéu de palha do velho e fazia-lhe apertar os olhos, protegendo-se. Um vento que vinha do horizonte distante de um sol que caia já vermelho.Crianças corriam ao redor da praça. Ele tossia sempre. Uma tosse velha, áspera, rouca, embrutecida, cansada. O menino apertou as pedras na mão suja de areia e olhou para o velho. Engoliu uma porção de saliva de vez e arredondou os olhos. De longe, ouvia-se um cantar sincrônico de pássaros e um balançar preguiçoso de galhos e folhas daquelas árvores pesadas. A mão do menino ia ficando vermelha e as pedras já lhe deixavam pequenas marcas. A fumaça do charuto subia em forma de serpente e era letal. O menino ficou pálido. Veio-lhe o vulto da mãe, da igreja, da cruz, do cemitério e do céu. Respirou. As pedras agora caiam sem pressa uma a uma e já não havia mais dor em sua mão. O velho sorriu. Disse alguma coisa muito baixo pra si e deu outro trago. O menino virou-se levantando os cotovelos na altura do peito, contrapondo-se ao vento que assanhou seus cabelos e correu em passos leves e largos em direção ao sol vermelho que agora estava por trás da serra escura.
O chão da praça estava coberto por folhas secas e formavam um tapete. As pedras já não doíam nas mãos, a serpente se desfez na atmosfera e o velho fechara os olhos com a força do vento.
Um excremento verde, gosmento e minúsculo de um passarinho qualquer caiu no doce do menino que brincava do outro lado e misturou-se à calda de caramelo. Os olhos verde-claros de Beatriz tremeluziam à luz cansada do poste que iluminava a praça.
Um cachorro vira-lata, na flor da idade, morreu atropelado pelo carro do lixo.
E o velho tossiu novamente.

Tuesday, October 24, 2006

Quando nada é belo


Os olhos do moleque fitavam o alto do Teatro Castro Alves. Olhos pretos e redondos, fixos no alvo, concentrados feito olhos de uma águia em sua presa. Sua mãe estava no chão, enrolada em panos, com outra criança ao peito. Era final de tarde e um vento frio escorregava entre os corpos.
Na praça do Campo Grande as árvores são frondosas, grandes, imponentes feito os prédios e casarões que as cercam. Há uma miserabilidade que convive com o luxo naquele lugar. Tudo é indecifrável. Pessoas bonitas em carros importados passam por ali enquanto velhos e mendigos compartilham generosamente bancos e chão da praça. Há um peso ali. Uma melancolia, um desalento, uma feiúra.
Eu sentei por algum momento em um daqueles bancos. Junto ao meu pé esquerdo, uma folha seca e amarelada de outono flutuava sobre uma pequena poça d’água. Um senhor, ao meu lado, lia um jornal amassado. O menino continuava olhando pra cima enquanto o outro tentava sugar o leite que a natureza se encarregava de suprir. Ali tudo é lento. Há um clamor ali. Um clamor de gente miserável que acorda, sobrevive e dorme ali. Uma solidão. Um desamparo.
Começou a chover. Um chuvisco fino e fraco, que deslizava pelas folhas, pelo vidro dos carros, e deixava a calçada brilhando feito as estrelas que mais tarde surgiriam. O céu foi escurecendo. Nuvens iam ficando cada vez mais densas e escuras como que se harmonizando com toda aquela apatia. Um cachorro vira lata latia no meio do asfalto molhado e os carros começaram a buzinar, uma após o outro, impacientes, apressados. A luz vermelha do semáforo agora reluzia com mais intensidade diante da noite que caia. Fui embora.
No caminho, lembrava dos olhos daquele povo que são sempre olhos que pedem. Sempre um olhar de quem carece de algo. Aquelas crianças de dois ou três anos correndo nuas naquele frio. Aquelas mulheres jogadas no chão. Aquele fedor, aquela imundície. Ecoava ainda em meus ouvidos a gargalhada de alguns homens que bebiam e jogavam dominó. Uma gargalhada solta, ressoante, que no fundo desdenhava das mazelas da vida e comemorava o triunfo de estarem vivos.
Ali, a feiúra vê a beleza e não pode jamais tocá-la. Ambas convivem, mas não se pertencem. Nenhuma das duas suporta uma a outra. Há uma mistura de passado com futuro, de progresso com atraso, de mentiras com verdade, de docilidade com crueldade.
Não. Nada ali é belo.

Sunday, October 22, 2006

As moscas e a poça

Nuvens brancas no céu. Daquelas fofas e grandes que pensamos, quando crianças, ser de algodão e um céu azul, aquele azul claro que tentamos penetrar com os olhos em busca do infinito. Dentro do ônibus, misturavam-se cores contrastantes. O verde esmeralda dos olhos da moça lá na frente com sua blusa cor-de-rosa e cabelos loiros molhados e a sujeira preta dos pés do menino que vendia balas de gengibre a gritos. Ônibus são verdadeiros centros de complexidade sócio-visual. Existem, de fato, essas discrepâncias coexistindo que se vê poucos lugares. Um bêbado desdentado-barbudo-bafudo-grudento com sovaco fedorento ao lado de uma Lady (de capa de revista) com aromas de perfume francês. Natural, como o semáforo vermelho, os idosos sentados lá na frente, os pré-adolescentes ultrapassando gargantalmente os decibéis permitidos por lei, o cobrador com cara de ressaca, o motorista querendo atropelar o mundo e os estudantes inclinando seus livros na cabeça dos privilegiados sentados. Os ônibus, além disso, trazem consigo uma contradição intrínseca. São chamados de coletivos, mas a verdade é que não há nada mais individualista. Mas, volto às cores. E nesta manhã, as cores eram vibrantes. Do lado de dentro, o amarelo do vestido da menina de braço. Do lado de fora, moscas ao redor de uma poça. O dia estava suave. A luz do sol estava suave e se via partículas de poeira quase invisíveis a dançar no ar. Alguns homens do lado de fora se aglomeravam em círculo. Um pombo assistia a tudo no fio do poste. As lojas estavam abertas com vendedores ávidos por ganhar dinheiro. Os carros seguiam seus destinos. A mulher sentada ao meu lado, com óculos castigantes, dormia com um livro de romances sobre a perna. Haveria falta de romance na terra dos viventes? Eu pensava no meu futuro, pelo menos, no dia de amanhã. O que poderia haver contra o amanhã? Moscas. As moscas naquele dia seriam a negação do amanhã. Moscas girando em torno de uma poça. Meu olhos automaticamente se viraram para frente, pra onde havia futuro, porque se negavam a contemplar a dança das moscas. Não seria possível. Aquele dia, mesmo com todas suas contradições, mesmo com todas suas cores discrepantes, mesmo com mendigo fedorento ao lado de Lady de capa de revista não deveria caber mais nada.
Voltei meus olhos para o romance das pernas. A senhora dormia. Com que sonhava? Estava cansada. O pombo continuava no mesmo lugar. O menino dos gengibres parou de gritar. O semáforo continuava vermelho nos forçando a continuar parados no tempo. O motorista limpava o suor da testa. A menina lambia seu doce pirulito e as moscas continuavam rodopiando. A essa altura não me importava mais se ônibus era um transporte coletivo ou se funcionava como instrumento reforçador de uma sociedade capitalista. Senti um embrulho no estômago.
Uma senhora religiosa baixou a cabeça num ato de oração. Cheguei a duvidar se haveria amanhã. Os odores, cores, cabelos, roupas, livros, bolsas, azul do céu e verde esmeralda, tudo agora se misturava num tornado em minha cabeça.
O semáforo abriu.
À frente, o futuro.
Atrás, uma senhora. Deitada num asfalto quente, com os braços estendidos, com a cabeça numa poça, moscas dançando e o pombo que a tudo assistia.

Sunday, September 10, 2006

Lá vem Zé

Lá vem Zé, tombando prum lado, tombando pro outro. Caindo pra aqui, caindo pra ali.
Lá vem Zé, perdeu o caminho, seu pé tem espinho, perdeu a cabeça, nem é João Batista.
Lá vem Zé, ainda é cedo, luz calma nas costas, respira cachaça.
Lá vem Zé, chutando a lata, o dedo cortado, bermuda encardida.
Lá vem Zé, cabelo assanhado, soluço e tropeço, conversa sozinho.
Lá vem Zé, artista da vida, coloca no bolso o mundo e os sonhos.
Zé pende prum lado, Zé pendo pro outro.
Lá vem Zé, subindo a ladeira, abraça o poste, a rua tá turva, lá vem Gabriela.
Lá vem Zé, sem camisa, sem calça, sem chinelo, sem alça, só soluço, topada.
Lá vem Zé, esqueceu da mulher, o dia tá triste, vamo tomá uma!
Lá vem Zé, não sobe a ladeira, namora com a mosca, levanta o dedo.
Lá vem Zé, faz um discurso, olha pro alto, soluça, se encurva, tropeça.
Lá vem Zé, parece uma cobra, pra lá e pra cá, e ri pras paredes, entende de tudo.
Lá vem Zé, a mão calejada, uma vida sofrida, hoje tem feijão, café acabou.
Lá vem Zé, arroto, tropeço, soluço.

O mundo girou.

Formigas vermelhas.

Sóis das galáxias (onde há felicidade...)

Na gota da água, no sóis das galáxias, no vento da praça, na pedra do rio.
Conversa que roda, na lua cinzenta, na areia da duna, nos olhos de Lia.
Eu lia um livro de prédios e nuvens chovendo aqui dentro. Um vento.
Na noite calada, na chuva mendiga, no escuro de céu... firmamento.

A tinta vermelha, o branco das aves, o verde dos olhos, cantiga.
O pé de menina, caminhos sem volta, andar que não pisa, artista.
O sol da janela que bate lá dentro, então eu me lembro que ainda há dia.
A noite que vaga no beco, na rua, estrelas que dormem, não há melodia.

A mão que desenha, a boca pequena, papel recortado, cinema.
A mão que umedece, cabelo castanho, o ar que suspira, poema.
A dor que não dói, o canto da alma, a voz que penetra, silêncio.
A rua de pedra, o peixe da praia, café na varanda, entendo.
O sonho liberto, o canto do mundo, criança que pula, candura.

Thursday, August 31, 2006

“É a vida”

O céu estava claro, com certeza, mais do que a consciência daquelas pessoas atrás das quais meus pés caminhavam numa tarde de um estação qualquer de minha infância. Eu deveria ter meus oito ou nove anos. Vinha subindo à rua a procissão. Uma imagem carregada pelas mãos daquele povo humilde e profundamente religioso, no meio dos quais eu era induzido a sofrer um processo de assimilação cultural. Eu, ingênuo como qualquer outra criança, não sabia o significado nem do santo, nem da procissão, muito menos aonde eu iria parar subindo e descendo ruas atrás de vozes e arrastados de pés num tom melancólico e sofrido. Havia muitas senhoras, com caras de “é a vida...”. Lembro de uma vizinha minha, que, aliás, já está em outra dimensão, que dizia peremptoriamente que o inferno era aqui. Eu estranhava tamanha afirmação e, apesar de não ter idade suficiente para contestar crenças e teorias, até porque se tratava de um conhecimento de uma anciã e, conhecimentos de anciãos sempre são respeitados, eu simplesmente não concordava, fundamentando minha convicção em todo um arcabouço teórico construído pelo minha vivência e imaginação pueril. Um mundo onde eu tinha o prazer de brincar todos os dias e fazer quase tudo aquilo que eu queria estava longe de se configurar um inferno, até porque no inferno tem fogo e enxofre e eu não lembrava de ter sofrido nenhuma espécie de queimadura até aquele momento de minha vida. Minha ex-vizinha, além de ter elaborado essa teoria durante sua vida, também acreditava que na lua morava São Jorge. Em sua casa, aliás, tinha um quadro desse santo pendurado na parte central de uma parede de seu quarto. Ela olhava pro quadro e depois, olhando pra mim, dizia sussurrando com voz de mistério: “Na lua mora São Jorge!”. Como eu era criança e não sabia que às 23 horas, 56 min e 31 seg. (horário de Brasília) do dia 20 de julho de 1969 Neil Armstrong havia pisado na lua com seu pé esquerdo tamanho 41 e não constatara, por incrível que pareça, a presença de nenhum dragão, eu era levado a erguer os olhos ingênuos ao céu em noites em que a lua estava cheia e luminosa. Apesar de ter verificado em alguns momentos desenhos estranhos que se formavam ali dentro, confesso que, por mais criativa que fora minha imaginação, nunca fui convencido de que a velha tinha razão. Razão, a propósito, foi uma virtude que passei a partir daí a dissociar das pessoas idosas. Era preciso distinguir entre velhos sábios e aqueles que gostavam de contar muita estória.Mas, voltando à procissão, eu caminhava olhando pro santo, que ora pendia pra um lado, ora pro outro, carregado por mãos vacilantes, já sem forças, num trajeto que parecia não ter mais fim. Seguia, a convite de um amigo meu da escola, cuja mãe era devota. Era preciso seguir a procissão e, enquanto os velhos cantavam e olhavam pro céu como que pedindo uma vida menos dolorosa, eu me surpreendia com a aglomeração de pessoas que quase não se conheciam, quase não se falavam, talvez nunca se houvessem vistos uns aos outros, mas estavam ali, compartilhando daquela fé, daquele sentimento, como uma família provisória de rua, ligados por algo muito forte, abraçados aos seus terços e crucifixos, sempre com aqueles olhares pesados de “é a vida”. E assim, foram alguns dias de minha infância, no interior do nordeste, agreste pernambucano, na cidade de Caruaru, quando o mundo que eu conhecia não ia muito além de estórias como essas.

Pombo, mendigo e francesinho

Gotículas d’água misturadas à areia escorriam por entre as pedras desencontradas que formavam o chão da Praça Municipal. Lama. Nas escadas do antigo Palácio do Governo, um homem de cara embrutecida, encardida, sustentando um bigode preto e espetado, observava com um olhar morto o movimento colorido dos turistas que por ali passavam. Meninos pediam esmolas de dez ou vinte centavos para comer. Uma mulher na calçada, já na esquina da rua Chile, puxava um peito murcho para dar de mamar ao filho grudento e barrigudo. Acho que estava doente. Um velho baixinho, com poucos dentes, mas risonho, vendia picolé. Próximo ao Elevador Lacerda uns hippies vendiam seus brincos, colares e pulseiras. Fui até próximo à lanchonete. Lá, vi uma italiana gorda, cheia de colares, de bochechas coloridas revirando a bolsa à procura de algo que não consegui descobrir o que era.. Ao lado, duas crianças: uma menina e um menino, ambos francesinhos, branquinhos, loirinhos, de olhos azuis e bochechas rosadas sorviam seus deliciosos sorvetes de cajá e morango, suponho. Do outro lado, sentado, um casal de namorados. Num ato descuidado, a moça deixou sua blusa manchar pelo sorvete. O namorado levantou-se rapidamente a fim de tomar as providências necessárias para reparar o dano, pois a moça ficara muito constrangida com aquela situação. Um menino pretinho, pés no chão, cabelo enroladinho, dentes cheios de cárie, olhos esbugalhados, acompanhava a cena, empinando a barriga para frente que ajudava a sustentar a tabuleta dos queimados que vendia. Ali por perto, uma jovem paulista bem vestida, branca, cabelos lisos, bolsa de couro, perfeitamente maquiada, contava com suas unhas muito bem pintadas seus fios de cabelo enquanto esperava o namorado voltar da lanchonete. Havia turistas de todas as nacionalidades. Italianos, franceses, americanos, japoneses, argentinos, com também do Brasil. A maioria carregando suas máquinas fotográficas para lá e pra cá. Algumas senhoras, algumas, repito, olhavam pra aquelas crianças pobres com olhares meio espantados. Aquelas criaturinhas eram muito diferentes de seus netos... Escorei-me na mureta que dá de frente para a Baía de Todos os Santos. Lá em baixo, os casarões velhos da Ladeira da Montanha, o Mercado Modelo, os ônibus e as pessoas minúsculas. De lá de cima tudo é minúsculo e podemos dominar aquelas águas azuis e tranqüilas sempre lindas e alcançar com as pálpebras a ilha de Itaparica. Soprava um vento ameno de final de tarde. Olhei para a Câmara Municipal e lembrei de um movimento de estudantes há uns dois anos atrás, que protestavam contra o aumento das passagens de ônibus. Enquanto os policias caminhavam rumo à escadaria da Câmara, os estudantes cantavam: “Marcha soldado cabeça de papel, quem não marchar direito vai preso no quartel...” Mas não demorei muito com essas lembranças. Logo, voltei a atenção para o outro lado onde os pombos realizavam sua trajetória de sempre: Vinham até o chão da praça comer depois subiam no cume do antigo Palácio do Governo. Desciam e subiam. Mais à frente, a praça Tomé de Souza. Lá o chafariz divertia as crianças. Os velhos e os guardas arrastavam seus pés e barrigas. Sentada de pernas cruzadas num banco e com um vestido cor-de-rosa desbotado, uma prostituta velha, magricela e aparentemente faminta, tragava um cigarro fedorento. Quase no centro da praça, o busto do bispo Sardinha. Toda vez que o vejo, me vem à cabeça inevitavelmente a cena cruel de sua morte: há uma versão da história que diz que o bispo fora vítima do canibalismo dos índios. Até hoje não se sabe a verdadeira estória. Mas o fato é que não há dia em que eu pise ali e não me venha à mente a imagem do bispo sendo devorado pelos índios...Na ladeira do pelourinho, sentados em frente à entrada da antiga e primeira faculdade de medicina do Brasil, outros hippies estendiam suas toalhas de colares e brincos no chão. Desci até a Fundação Casa de Jorge Amado. Estava fechada. Voltei até a Praça Municipal e pude contemplar as mesmas cenas de sempre: os turistas coloridos e deslumbrados com as paisagens coloniais, as crianças pedindo moedas para comer, os francesinhos de bochechas rosadas, o desfile das moçoilas do sul e sudeste, os casais de namorados, os pombos subindo e descendo, os desempregados, os peitos murchos das mulheres mendigas, pretos e velhos de olhares perdidos e minguantes e o vento, o vento ameno da Praça que, de alguma forma misteriosa, conseguia tudo harmonizar.

Perda


Perder... Se me for capaz descrever o vazio da perda, ao perder-me da vida seguirei ao panteão dos deuses, ou, ainda em vida, poderei ser coroado com a glória de louros.
Se me for possível figurar a alma congelada e perplexa, poderão construir-me uma estátua de bronze...
Noite fria, congelada, ando descalço, aflição. Alma retalhada, afogada, triturada. Coração como cristal fragmentado,espezinhado.Fibra desmanchada.Vazio do universo, do silêncio solitário, solidão. Chão que nem abismo, abismo-escuridão, perdição. Pássaro que foge, fugido, foragido, furação. Dedos que se quebram, quebradiços, quebram tudo, colisão.Faca que penetra, inquieta, indigesta, maldição.Lágrima que escorre, que percorre, que transcorre, rouquidão.Espírito que escurece, empobrece, endurece, diluição. Corpo que embrutece, se fadiga, se estica pelo chão.
Perder... antes de deixar de ter é deixar de ser, de se ter, de se ater. Meu espírito esmaece, minha força entra em forca, minha voz...és tão só. Quem dera perder deixasse vazio... Perder deixa buraco, deixa cratera. Minha alma abandona-me sem licença, perambula pelo chão e rastejando, suplica pela volta, não tem volta...não tem rota.
No instante exato da perda o meu mundo paralisa, o que penso entra em choque. Sou um curto-circuito. Espantalho no sertão. Absorto, apaixono-me pela dor. Meus olhos se embebedam, meu corpo se absorve, minha mente, lentamente...
Nesse instante o meu ímpeto se desfaz, quero paz. Viro criança, só sou lembranças... de momentos, de palavras, de gestos incertos, de olhares tristonhos, risonhos, sublimes.Viro-me em passado, que me habita, e não encontro saídas.
Minha mente se dilui, minha força não tem força, meus sentidos já não sei...
Nesse instante minha luta é derrota, minhas discrepâncias alianças, minhas mágoas compaixão, as ofensas só perdão.
Querer não é mais poder, fazer não é mais acontecer, amar...ah amar... que o universo te comunique o meu amor em luz de intensidade e fulgor. Porque te quis, porque te quero, porque te espero, porque... Ah... Já não sei mais porque.
Quando se perde, não se sabe mais porque fazemos, porque amamos, porque pensamos, porque lembramos.
Só sabemos que perdemos...
Mas sentimos...
que amamos.

Sertanejo, vida de cão

A seca me pariu nesse sertão solidão. A lua à noite fica quieta, distante... parada... não conversa comigo. Não tem boca, não tem rosto, congelada.
Vida de pobre. Meus pés, tanto chão. Barriga de verme, vivo sem condições. O sol meu carrasco. O grilo canta, o sapo canta(?). Sou só alma que vaga esquecida do mundo. Aqui tem seca, aqui tem pedra. Minha pele envelhece, pois quando moço já sou idoso. Os meus dentes já nem lembro... “Minhas vista” não tem óculos. Aqui tudo é magricelo. Quando engorda é doença. Comer fora ? No terraço...
Ah Sertão! Tu só paris gente feia, desnutrida, tão cansada, tão sofrida, tão explorada. Quando escreve, só o nome. Quando lê, o sobrenome. Sobrenome ? Sobrenome é coronel... gente humilde um apelido, zé, toin, biré.
Mão calejada, pé rachado, cabelo duro, coluna encurvada. Não tem pose, não tem moda, não tem glória, só trabalho. Ama tudo porque por tudo luta. Amo o chão, ama a caneca, ama o colchão. A roupa já virou corpo, o chinelo já virou pé, o chapéu já virou cabeça. Crescer só na estatura e olhe lá quando não virar anão...
Um remédio é uma conquista, uma escola um triunfo, o trabalho sua vida. Como tu és belo nordestino! E como dizem: “Antes de tudo um forte”! Tão discriminado, tão rejeitado, tão enojado. Ah, espíritos de porcos, vós não sabeis quem construiu esse Brasil! Vós não entendeis a vida dura, o braço forte, a consciência e a coragem de um nordestino! No nordeste sei quem sou, sei porque sou. O nordestino experimenta cada dedilhada de sua viola, cada apertada de sua sanfona. Tudo é muito intenso, tudo é muito único, tudo é muito divino. Conversa com bicho, conversa com a mata. Conversa com passarinho, conversa com a vaca. Quando a morte vem é mais um calo no coração. A alma chora, o corpo prende, tem que ser forte...
Oh Gonzaga, quanta saudade... Tu cantaste o teu povo, tua estória, tua pátria. Sonho de sertanejo é acordar vivo no outro dia pra poder labutar e criar filho. Sertanejo tem família. Sua riqueza é o seu nome. Tem palavra, nunca foge. Tem decência. Na estante, só uma foto, preto e branca, desbotada, apagada. O filho nunca pede. Desde cedo aprende a conquistar o pouco que a vida lhe oferece. A vida deveria ter outro nome... desvida... invida...qualquer coisa. Pro sertanejo sempre serve qualquer coisa, tudo serve, tudo dá, tudo pode. Não tem escolha, só engole, desce seco, sempre engasga. Quando morre é um alívio da desvida que o matou.

A velha e o quadro - Reminiscências de um visita.

Na minha rua, rua de infância, algum tempo atrás, havia uma casa, onde morava uma velha que tinha um quadro. Era uma casa simples, com paredes sem reboco, quase isolada na rua. O espaço era pequeno, talvez dois ou três cômodos, a sala era pequeníssima. Havia também uma mesa forrada com um pano branco bordado, em cujas bordas havia tiras, e sobre a qual havia uma caneca. A velha era muito magra. Falava inclinando-se para frente, quase afônica. Era tão feia que mais parecia uma assombração. Pulei da cama durante várias madrugadas, suando frio, em virtude dessa figura que ficou impregnada em meu cérebro tão fértil. Tinha muito medo daqueles cabelos secos, daquelas unhas tortas e sujas, daqueles olhos que mais pareciam buracos negros. Um dia me tocou. Paralisei. Num “estado papel sulfit”, quase não respirava. Congelei. Um dedo em meu ombro, outro apontando para o quadro. “Aquele ali”, sussurrou com uma voz rouca e arrastada (sotaque pernambucano bem forte), “é São Jorge”. Eu não sabia quem era São Jorge. Meu profundo conhecimento religioso aos cinco ou seis anos de idade e minha formação protestante, por algum motivo até hoje não desvendado, subtraíram-me essa informação. Muito menos saberia o que ela pretendia dizer com aquilo. Meus olhos arregalados apenas o apontaram compulsoriamente. Esses segundos foram horas. Perplexo, continuava obervando-o enquanto minha alma pedia socorro, buscando qualquer brecha pra fugir daquele recinto. Até hoje não sei o que fui fazer lá... Acho que alguém me levou... Sua unha continuava pesando em meu ombro. Não sei se ela percebia meu nervosismo. Não sei se ela percebia mais alguma coisa na vida... Fiquei ali, como que admirando o quadro, como que interessado naquela “obra de arte”. Senti quando quis explicar-me São Jorge (puxou oxigênio das profundezas de seus pulmões onde ainda havia fôlego de vida e fez menção de que iria realizar um discurso), mas viu meus pés escapulindo e dirigindo-se à porta de saída e desistiu. Acho que a frustrei. Mas não guardei peso na consciência. Tenho a impressão de que era uma velha frustrada e uma frustração a mais não iria causar-lhe maiores danos. Vi então a luz do sol quando abri a porta. Nesse momento - não lembro se estava só - senti-me feliz de ver a vida do lado de fora. Acho que aí minha cor e respiração foram voltando paulatinamente ao normal. Ainda olhei para trás e vi a mesa, a caneca, o quadro e a velha, olhando pra mim, não sei com que olhar, mas metia-me medo. Saí, ufa! Acho que fui correndo pra casa. Durante toda minha infância fiquei com medo de velhas. Sempre associava uma velha a uma mesa branca, caneca e São Jorge. Se fosse supersticioso, não sei o que formaria com esses belos símbolos...
Gostaria de ter associado: “eu na lua, sentado a uma mesa branca tomando café ou chá numa bela caneca com São Jorge...” Se tivesse feito essa associação, talvez tivesse menos pesadelos. Mas e a velha, onde ficaria?
Ah, com certeza eu a entregaria ao dragão.

Pegadas à beira do mar

Os grãos de areia enroscavam-se entre os dedos de meus pés e naquele momento sentia paz. O mar engolia o escuro da noite e um vento morno bailarino, de mãos dadas à minha alma, rodopiavam no espaço, leves feito folhas secas de outono. O passado deixara de existir e o futuro era... o próximo passo. Um andar sem rumo mas com destino certo. As palmas das mãos se aqueciam enquanto os olhares vagavam por cada local inexato daquela paisagem. Água e terra se tocavam e se beijavam. Dedos se entrelaçavam tentando imitar a harmonia do universo que nos envolvia. Um olhar mergulhava em outro em busca de águas transparentes que revelassem algum mistério. As palavras eram mudas. Só o mar, cujo ronco das ondas reverberava dentro de mim, e a lua a vigiar. Entendi que estrelas não eram para contar, mas para servir de companhia a pés descalços que se propunham a marcar areia branca e fofa. Quisera eu ter instrumento pra registrar o momento do silêncio absoluto do mundo, da existência em pegadas, de destinos que se entreolhavam. Respirar não era apenas absorver oxigênio, mas degustar a energia proveniente dos corpos celestes e terrestres que por ali estavam. Não havia planejado aquele encontro. As estrelas em comunhão com alguns planetas o haviam arquitetado, e eu apenas aceitado. Quis congelar cada circunstância e sentimento, mas o ar quente oriundo do mar não o permitiu, e eu apenas inconformado. Minha casa estava longe e eu imaginava uma vida sem casas, almas nômades dançando ao ritmo e ronco das ondas. Minha gravata ficara no quarto e eu imaginava uma vida sem papéis, crianças recortando ou pintando com pincéis. O eixo do planeta era no encontro das palmas das mãos e lá se preservava o equilíbrio perfeito. A gravidade puxava pra cima, para que os pés não se atolassem em suas próprias lamas. O sentido da vida era o de perpetuar a coexistência de dois sentidos que se fundiam. A direção era pra dentro, sempre pra dentro de cada um. Nesse dia entendi que a vida podia ser luz, água, frio, calor, ou pegadas intermináveis à beira do mar.

Olhos de Jabuticaba

Juliana, pequenina, olhava nos olhos de sua avó perguntando-lhe sobre tudo o que o mundo poderia suscitar-lhe dúvidas. Sua avó, calmamente, como que tocando piano no braço da cadeira, balançava-se, rindo pra si, expondo as dádivas do tempo em sua testa, parecia estar retornando a cada ano que vivera até ali. Juliana, quatro aninhos, com olhos parecendo duas jabuticabas e finos cabelos pretos jogados ao vento que corria por acaso naquela sala, continuava a olhar fixamente para a avó, esperando qualquer coisa que não fosse o simples silêncio. Juliana continuaria com muitas perguntas durante a vida... Sua avó continuaria com muitas respostas... A tarde foi caindo e Juliana agora não se incomodava mais com suas dúvidas. Corria de um lado pro outro da sala feliz como um passarinho. Mergulhada em sua vida, Juliana não pensava em mais nada, apenas vivia. Pés descalços no chão e pirulito na mão.

Diálogo com uma sereia

Convivemos com uma moça durante vários anos que tinha, dentre outros hábitos esquisitos, assistir à novela em pé. Aliás, as novelas, pois eram as de todos os canais e de todos os horários. Durante quase toda minha infância e adolescência ouvia minha mãe criticá-la, não porque ficava em pé, mas porque sempre apertava os olhos para poder enxergar. Dizia: “deixar de apertar esses olhos menina!”, às vezes, até num tom raivoso. Dentre suas qualidades, era dotada de um grande habilidade para adivinhar o que iria acontecer nos próximos capítulos, até mesmo aqueles que ainda estavam muito distantes. Sabia o nome de todos os personagens e explicava o enredo de todas as novelas transmitidas e retransmitidas de que se tinha notícia na época. E se emocionava sempre. Não eram raros os momentos em que a flagrávamos dando socos no ar ou xingando algum pobre ator. Confundir personagem/ator era de praxe. Ficava com raiva de verdade. Tremia-se, discutia com qualquer um que a contrariasse. Ia pro quarto às vezes revoltada, resmungando porque fulano ou cicrano não havia se comportado da maneira como ela considerava a correta. Eu sempre achava divertido assistir novela ao seu lado porque ai podia constatar de uma maneira bastante experimental o efeito da ficção na vida de uma pessoa, até que ponto a novela cumpriria seu papel (se é que traumatizar pessoas realmente fosse seu objetivo final...). Toda noite quando chegava em casa do colégio, lá estava ela em pé assistindo ao lado da cama de minha mãe, que vez por outra pedia para ela deixar de apertar os olhos. Há anos atrás contou-me uma estória bastante interessante. Disse que quando criança, caiu na cachoeira que fica na entrada da cidade de Paulo Afonso-BA, onde nasceu, (pra quem não conhece, é o tipo de cachoeira caiu-morreu). Porém, para sua surpresa e alegria, uma sereia encantadora surgiu e a chamou para conversar. Não lembro bem o conteúdo do diálogo, lembro-me apenas que as duas ficaram batendo papo numa pedra durante um longo período de tempo e que a sereia havia lhe revelado alguns mistérios da natureza, além de lhe prometer coisas muito boas durante sua vida. Disse que foi o momento mais especial que viveu, jamais esqueceria. Logo depois do bate-papo, a sereia a trouxe de volta para a terra dos viventes. Eu, criança, ficava imaginando como seria bom se tivera a felicidade de cair na cachoeira de Paulo Afonso, por mais medo que tivesse de altura, e encontrar uma sereia. Só não sei se minha mãe gostaria da idéia de ver seu filho despencando ponte abaixo rumo ao que ela denominaria de morte. Mas na minha mente vinha apenas a imagem das sereias, que são sempre belas, pelo menos as que se tem notícia, e eu provavelmente não aceitaria voltar pra terra dos viventes, independente do que ela me prometesse aqui. Ficaria por lá, nem que tivesse que viver como peixe ou coisa parecida. Acho que sonhei várias vezes com isso até o dia em que minha mãe achou por bem estragar minhas fantasias, dizendo que tudo aquilo não passava da falácia, helenisticamente falando, um mito. Fiquei triste por descobrir ainda tão cedo que minha esperança havia morrido e, o pior, de morte matada, além da contradição de ter sido a primeira a morrer. Na verdade, não acreditei em minha mãe de imediato. Achava que ela estava com inveja porque não tinha tido a oportunidade de conversar com uma sereia. Depois, muito depois, passei a desconfiar da moça. Ou ela queria me enrolar, ou não girava bem da cabeça. E olhe que sempre me inclinei a crê na última possibilidade, mas deixa isso pra lá. Voltando ao caso das novelas, os anos foram passando, a moça cada vez mais apertava os olhos, até o brilhante dia em que passou a freqüentar uma determinada igreja na qual, com pouco tempo, foi batizada e tornou-se membro. Ficou bastante feliz. No início chegou até a paquerar um membro, mas sua paixão acabou caindo por terra quando descobriu que o amor de que o outro lhe falava em cartas resumia-se apenas a um sentimento fraternal. Ficou muito triste, mas passou. O que não se passa nessa vida... Até porque sua fé sempre fora maior que qualquer decepção amorosa e se alguém quisesse morrer na flor da idade, que contestasse sua doutrina. Bem, passou alguns meses distante de nós, viajando não sei pra onde e, o melhor, de avião! Coisa que até hoje só conheço pela televisão ou quando vou ao aeroporto despachar ou recepcionar algum parente ou amigo. Sentimos sua falta, porque sempre esteve muito próxima de nós. Quase me criou, quase foi uma segunda mãe, mas vale ressaltar, quase. Até o dia em que retornou de suas viagens (agora reais, podendo ser comprovadas com os bilhetes das passagens) e a vimos, para nossa surpresa, de uma forma diferente, da mesma maneira que ela a nós. A novidade? Estava agora usando óculos, com bordas pretas e arredondadas. Ficamos todos impressionados com o ar intelectual que este acessório lhe conferiu. Coincidentemente, era fim de tarde e estava passando uma novela. Pela primeira vez em nossas vidas pudemos contemplar com nossos olhos que a terra há de comer que a moça já não apertava mais os olhos ao mirar a TV, embora continuasse com o velho hábito de parecer um cabide ao lado da cama. Até hoje não compreendo porque minha mãe durante tantos anos nunca a levou para fazer um exame de vista e assim, livrá-la daquele sofrimento, ao mesmo tempo em que também pouparia a si (a saliva) e a nós, (os ouvidos). Tem coisas assim na vida que não compreendo... Mas quem sabe os óculos foram exatamente a promessa da sereia, a fim de que pudesse usufruir com plenitude aquilo de que mais gostava na vida? Não sei...
O que sei é que hoje está morando no Recife e faz tempo que não temos notícias. Só espero que continue usando os óculos que o destino lhe proporcionou e que não conte mais suas estórias de sereia pra criança nenhuma, principalmente para crianças meninos.

Formigas no chão

Um corpo sobre um prédio numa avenida. Uma fronteira. Em baixo, pra lás e pra cás. Pés, tamancos, sapatos. Tudo em perfeita harmonia. A vida em movimento, os pés em movimento, os carros em movimento. O vento, a poeira, a luz, o mundo em movimento. Em cima, a alma presa, subjugada, não sabia escapar, então tolerava. Em baixo o pipoqueiro, a criança segurando o balão, o homem vendendo cartão. Em cima o silêncio do vazio, a introspecção. Talvez ninguém o visse. Cada qual com seus passos e pensamentos escrevendo circunstâncias de suas vidas, em ritmos lentos ou rápidos. Cada um consigo ou com o outro, mas o corpo só. Só de si, só da vida, só do mundo, só das vozes, só dos toques. Um vento passou... Naquele instante não haveria mais súplicas, nem conselhos, nem remédios, nem diálogos, nem idéias. Um vento separava a cor da escuridão, o sonho da frustração, a vontade da abdicação. Em baixo as formigas, um palhaço, um cidadão. Em cima um corpo, despido de sentido, foragido da essência, rejeitado pelo ego, massacrado pelas próprias mãos. Não busca mais nada, não quer mais nada, nada lhe interessa, nada lhe desperta. Só o ímpeto de “desexistir”. Nesse instante tudo é nada, e o nada seu tudo. Tudo já foi, e o mais nunca será. Tudo nunca foi. Não é pesadelo, não é desespero, é o frio de “desalmar-se”. Não tem lágrimas, já secou. Não tem volta, não tem jeito, não tem rota, não tem porta. Uma nuvem apareceu, escureceu. Em baixo tudo acontece, tudo aborrece, tudo contamina, tudo anima. Em cima, o corpo esquece que já foi gente, que tem lembrança, que já andou. Nesse instante, minúsculo instante, o som sumiu, a dor sumiu, o pensamento sumiu, o espírito sumiu. O corpo agora não mais estático, inclina-se definitivamente para a frente e... fronteira. Cruzou. Pluma no espaço. Gravidade. O tempo parou. Cai, vai caindo, caindo, caindo... Um vento passou, uma nuvem passou, o mundo parou, o instante se quebrou. Não tem como voltar, não tem com ajudar, não tem como fazer. Um susto, um frio, um suspiro, último suspiro, chão. Lá em baixo, sapatos, tamancos, formigas, palhaço, homem vendendo cartão, menino segurando balão e um corpo abraçado ao chão. Agora sem pulsação, sem rejeição, sem conversação. Um corpo beijando o chão. Sangue no asfalto. Corpo coberto com papelão

Goles de café

Verônica sentou-se numa das poucas cadeiras que ficavam junto à porta e pediu um café forte naquela manhã. Eu, à sua frente, apenas a olhava, observando o movimento de sua garganta em cada gole que dava, como se não houvesse nada mais interessante para se observar naquele momento. Verônica alternava entre goles e expressões de sorriso quase imperceptíveis, olhando pra todos os cantos e quase pra mim. Eu viajava, como sempre viajei em situações de silêncio com palavras engolidas misturadas a café. Na noite passada, eu pensava em mim como matéria constituinte do universo, e me imaginava adubo pra plantas, refeição pra bactéria ou qualquer coisa um tanto mais nobre... Mas eu cria que não era apenas isso e tentava fazer com que Verônica me enxergasse além disso. Ficava me imaginando como apenas alma e já que dizem que os olhos são suas janelas eu, nessa condição, punha meus cotovelos sobre as amplas janelas de meus olhos e acenava pra Verônica cobrando dela um simples olhar que me percebesse. O tempo foi passando, o café foi acabando e Verônica só tinha olhos pro colorido do mundo físico: o fardamento vermelho dos garçons, o amarelo do suco de cajá da mesa ao lado, e todas as outras cores que me roubavam a oportunidade de aparecer. Eu, da janela, acenei com as mãos durante vários minutos quase intermináveis e nada. Cansado, fui escorregando, escorregando até que só restaram na janela pontas de dedos e cabelos. Verônica terminou o café e decidiu olhar pro que restara de mim. Perguntou-me sorrindo no que eu estava pensando durante aqueles minutos de silêncio.
Eu prontamente respondi :
- Bactérias

Tv no divã

Um jovem senhor chegou-me um dia na loja e perguntou-me enfaticamente se havia tv de 20” histérica. Nesse exato momento o espírito de Freud invadiu-me os pensamentos e fui conduzido a alguns meses atrás, quando me encontrava junto a uns amigos discutindo o pai da psicanálise e a histeria. Freud, segundo me informaram, foi quem havia abordado de forma mais profunda a questão e a conceituado como a entendemos hoje. Em uma de suas teorias, ele associava histeria a traumas ou desejos sexuais reprimidos. Uma mulher que não realizasse durante muito tempo seus desejos sexuais poderia apresentar sintomas fortes de histeria. Tudo isso em minha mente (sexo, histeria, Freud, traumas, grito) naquele instante em que o homem olhando atentamente pra mim, com uma postura totalmente séria, esperava por uma resposta simples como: “Sim, senhor, nós temos tv histérica”. De alguma forma haveria sentido em uma tv ser histérica caso eu a aumentasse em seu último volume e quem sabe ele não estivesse precisando realmente disso... Estéreo e histérica passaram a ser quase sinônimos em minha cabeça e qualquer dissociação verbal que eu fizesse poderia conotar crueldade, tanto pela semelhança já provada de sentidos como pelo constrangimento a que o homem seria submetido ao ser indiretamente chamado de ignorante.
Mas arrisquei e disse também enfaticamente que tínhamos tvs estéreo. A primeira consequência foi um ar de conflito intelectual em seu semblante. A segunda: não vendi. Aquela palavra havia soado estranha aos seus ouvidos, pelo menos com relação a tvs. Novidade. Ele agora voltaria pra casa na dúvida entre qual de nós era o burro da estória: o que chamara de “estéril” uma tv que naturalmente não poderia procriar, ou o que olhava para uma mono pensando ser histérica...

“E o pior é que é”

Seu Zé era uma homem cético, pelo menos ao meu ver com relação a eventos da natureza. Sabia colocar tijolos sobre tijolos em construções mirabolantes e o fazia sempre com muito esmero. Era nordestino do “interior brabo”, mal levantava a cabeça, mal se pronunciava. Pra ele tudo estava sempre bom. Tinha belas filhas e uma esposa meio “avexada”. Numa das vezes em que houve um eclipse lunar ele estava passando uns dias conosco. Eu lhe disse que naquele dia, ou melhor, naquela noite a lua iria sumir através do efeito do eclipse. Primeiro tive que explicar-lhe de maneira científica e prolixa o significado desse evento. Depois quis convencê-lo de que de fato iria ocorrer. Não acreditou. Não sei se por falta de compreensão, por ser cético, ou por pirraça mesmo. Disse-me que queria ver com os próprios olhos. A noite foi passando e eu e seu Zé aguardávamos na varanda de casa aquele momento “mágico”. O que eu achava mais engraçado era que ele olhava pro céu como se estivesse aguardando a volta do Messias ou o fim do mundo, tal era a expectativa e desconfiança que se misturavam em seu olhar. Por mais que eu tentasse convencê-lo de que aquilo se tratava apenas de um acontecimento natural, para ele seria no mínimo sobrenatural.
O tempo foi passando e nada da lua sumir. Seu Zé olhava pra lua, olhava pra mim. Olhava pra mim, olhava pra lua e, fazendo cara de “esse menino quer me enrolar”, aguardava pacientemente o momento em que eu dissesse que tudo aquilo era uma brincadeira. Mas não tardou muito e a lua começou ser “comida”, conforme expressão por ele mesmo usada. Em alguns minutos a lua sumiu e seu Zé, não dispensando sua frase típica, pronunciou: “E o pior é que é!”. Eu, sinceramente, esperava de sua parte uma reação mais entusiasmada acompanhada de palavras novas... Mas, nas verdade, não foram as palavras que falaram, foi a cara de bobo de seu Zé olhando pro céu, agora menos descrente da mágica dos astros e do cosmo. Espalitava os dentes sentado num tamborete e sussurrava: “E o pior é que é””. Gostávamos dele pela simplicidade de sua pessoa. Era um homem pacífico e trabalhador. Sempre de bem com a vida. Foi ele quem construiu nossa casa em Caruaru.
A seu Zé, dedico essa lembrança.

Verde, amarelo, vermelho

Mariana estava mais uma vez naquele poste, cuja luz amarelada confundia-se com a fumaça espessa de seu cigarro. Um cigarro barato, daqueles que acompanham desenhos de caveira no caixão. A noite transcorria bela no movimento dos carros que iam e viam diante de Mariana, com vidros fechados, ar ligado e música suave e romântica. Mas dentro de si, Mariana sentia um inferno de dores e frustrações que pediam mais e mais fumaça pra dentro do que ainda restava de seus pulmões. Carregava no corpo um vestido que talvez já fosse sua sombra e, se algum dia lhe perguntassem: “ei, quem é você?”, ela poderia, sem cometer, sob qualquer aspecto, crime de falsidade ideológica, responder: “eu sou eu e meu vestido”, (vide Ortega y Gasset).
Mas o que me chamava atenção em Mariana era seu olhar, revestido de uma névoa densa. Um olhar duro e seco, que crucificaria a si e a qualquer alma “viva ou morta” que lhe aparecesse naquela noite.
Mariana comia fumaça e pedia inconscientemente que os céus se abrissem e de lá de cima caísse um raio que partisse ao meio a tudo e a todos. Não havia como tocar em Mariana. Não havia como se aproximar de Mariana. Não havia como ouvir coração em Mariana.
Ela continuava, quase que num ritmo frenético, a jogar pra trás seus poucos fios de cabelo ressecados. Cuspia de instantes em instantes quase no pé. Tossia. Tossia. Encostada no poste, já parecia poste, dura, seca, insensível. Olhava a noite de quem era amante. De fora, ouvia o silêncio de uma avenida indialogável que se abraçava ao seu.
A luz amarelada do poste e as outras do semáforo que terminavam por distraí-la: “verde, amarelo, vermelho. Vermelho, verde, amarelo”. Do alto do prédio, uma senhora fechava as janelas e cortinas para não sentir-se invadida pela cores, ruído e vozes da noite. Embaixo, Mariana continuava comendo fumaça.

Eu não sabia quem era Mariana.

Cara de ressaca

Marcelo sentou-se no banco da ponta e, com os cotovelos apoiados no balcão, olhava pra Daniele do outro lado que jogava pra trás seus longos e loiros fios de cabelo, enquanto terminava de tomar seu suco de laranja. No instante em que ela, casualmente, olhou na direção do rapaz, desencandeou-se no cérebro deste um processo neuro-químico-físico-elétrico-hormonal instantâneo, que resultou invariavelmente na criação de imagens quase impróprias, mas nem tanto. Marcelo não era pornográfico. Aliás, era recatado até na imaginação, justamente o lugar onde não haveria (que oportunidade!) possibilidade de ser punido nem discriminado por qualquer tipo de assédio sexual ou violação moral, caso fosse assim interpretado.
Embora não houvesse ingerido nenhuma substância alcoólica, Marcelo olhava para Daniele com cara de ressaca, o que equivale a dizer “uma cara de bobo deprimida”. Bobo, pelo deslumbramento. Deprimida, pela crença enraizada de que ainda que tivesse a chance de nascer de novo não alcançaria jamais o perfil mínimo suficiente para se candidatar à vaga de pretendente. Com cara de ressaca e cotovelos no balcão, fazia de si uma figura bizarra e, por falta de um simples espelho, não se dava conta disso. Daniele, pelo contrário, era, aos olhos de Marcelo, a encarnação da “plenitude da magnificência da beleza da natureza cósmica das constelações interplanetárias do infinito do céu que transcendia o universo absoluto e puro”. Imaginava assim. Nada erótico. Muito simples. Todas as musas que já tinha visto ou de quem já ouvira falar atuaram apenas como figurantes dos figurantes no palco em que a “plenitude da magnificência...” pairava. Era um momento especial. Os olhos de Marcelo, coitados, nunca haviam registrado figura tão especial. Ressecados por não permitirem que suas pálpebras piscassem, pareciam olhos de ET, projetados pra fora, comendo cada detalhe, cada centímetro do corpo e pele da pobre Daniele. Nem a boca conseguia fechar. Um corpo imóvel. Uma alma a deslumbrar-se com as portas inatingíveis do paraíso. Marcelo queria que o suco de laranja jamais terminasse, que o ponteiro do relógio sofresse um ataque cardíaco e paralisasse. Por ele, o mundo poderia acabar ali e só restassem os dois.
Pra cada canto de Daniele que Marcelo olhasse era um suspiro. Olhava pra boca, ah.. olhava pro queixo, ah... olhava pro pescoço, ah... olhava pros olhos, ah... Naqueles momentos não pensava mais em nada. Apenas contemplava. Foi a partir daí que, destaque-se, Marcelo deixou de ser ateu. Não seria possível!!! Hipnotizado com todas as curvas e encantos de Daniele, Marcelo não entendia, por mais ginástica mental que fizesse, como um ser humano (?) poderia ser ao mesmo tempo sonho e realidade, ficção e fato, abstração e concretude, fantasia e verdade. Entretanto, o fato mesmo é que Daniele acabou o suco de laranja e, em movimentos rápidos e bruscos, desceu do banco, pegou a bolsa, equilibrou-se nos tamancos e saiu, virando as costas pro seu fã solitário.
Marcelo não conseguiu entender porque ela agira de maneira tão indelicada e indiferente diante de tamanha veneração

Bilhete funerário

Antônio esperava Fabiana no altar. Nunca houve nem haveria dia mais feliz em sua vida. O terno fora comprado pelo pai, Goldofredo, cujo olhar não admitia jamais qualquer tipo ou sombra de imperfeição nos bens que adquiria. Era um homem distinto, pelo menos se esforçava em passar essa imagem, mas sofria internamente pelo fato de ser injustamente acusado por todo o bairro de ser um homem cheio de melindres, pomposo e adorador do luxo que não possuía. Já a mãe, dona Gorete, costureira desde os treze anos, amava quando saía com o marido pra comprar um par de sandálias uma vez por ano. Era sensacional. Embora se assustasse frequentemente com o barulho e movimento dos carros e precisasse tomar remédios para combater a tontura e mal estar provocados pela aventura de sair à rua, sentia-se no fundo feliz ao caminhar pela cidade de mãos dadas com o marido, aliás, quase pendurada ao seu braço esquerdo. Era uma mulher simples. Contentava-se até com o que sobrava do nada. Tinha ainda a vantagem de ser uma excelente dona de casa. Mercado de trabalho talvez soasse aos seus tímpanos como a “Terra do Nunca”.
Os dois estavam lá, esbanjando emoção nos sorrisos trêmulos, lenços e olhos avermelhados. Pareciam dois pombos, admirando a igreja, suas pinturas e resquícios de ouro. Seu Goldofredo, como sempre, cumprimentava os convidados com a seriedade e postura de um general. Já dona Gorete, sorria delicadamente, inclinando a cabeça ora pra um lado, ora pro outro, demonstrando uma afabilidade até com os estranhos como se já os conhecesse há pelos menos três séculos.
Antônio, por sua vez, continuava lá, estático feito um cabide, sério, com um leve ar de emoção. Mas, na verdade, estava controlando-se. Amava a Júlia. Ah... Como a amava. Na última vez que foi visitá-la deu-lhe um buquê de rosas que quase lhe custou o nome no SPC. Isso mesmo, Serviço de Proteção ao Crédito. Antônio era pobre, mas só materialmente. Tinha um coração cheio de amor, além de possuir qualidades que o tornavam um home de valor, como ser educado, trabalhador, esforçado e fiel. É preciso que se ressalte isto, fiel. Antônio jamais traíra Fabiana, nem quando queria. Nessas ocasiões sua consciência o acusava fortemente e ele chegava sempre a ela com aquela cara de quem pede perdão pelos pecados que a imaginação cometeu. Adorava olhar Fabiana, em qualquer situação ou circunstância. Apreciava cada movimento, cada olhar, cada palavra exprimida por aqueles lábios doces e carnudos. Gostava de vê-la penteando-se, jogando pra trás seus longos e sedosos fios pretos que quase batiam na cintura. Achava bonito até mesmo quando a via mal-humorada ou irritada. As expressões de raiva, tristeza ou agressividade de Fabiana, nada mais eram que traços de sua beleza inversa. Fabiana era pra Antônio o que o terno do casamento era pra seu Goldofredo, indiscutivelmente uma entidade perfeita.
Ocorreu que, num dado momento, naquele em que os semblantes dos convidados começam a variar entre expressões de cansaço e caras de enterro, Antônio deu-se conta de que Fabiana estava mais atrasada do que rezava o protocolo. Por que tanto atraso? Acontecera alguma coisa? O que teria acontecido? O tempo foi passando, o ponteiro do relógio agora corria à velocidade da luz e consequentemente as interrogações já começaram a desenhar-se na testa dos que aguardavam a cerimônia, desde os mais inocentes aos mais maliciosos.
Os pés de Antônio já travavam grande luta com os sapatos. Sua face agora só transmitia sinais de preocupação e angústia. O que estava acontecendo? Onde estava Fabiana, a mulher de sua vida e pós-vida? Começou então a sentir uma forte dor no coração. Diga-se de passagem, era um rapaz meio sensível, qualquer coisa o fazia sentir falta de fôlego e a suar frio. Mas neste caso, não era qualquer coisa, eram horas inexplicáveis de atraso no dia da sua iminente transição para a felicidade sem fim. Seu Goldofredo aproximou-se do rapaz e num ato de extrema sensibilidade e compreensão, pediu-lhe gentilmente que não exagerasse nos movimentos para não correr o risco de amassar o terno. Dona Gorete já havia sentado. Antônio se perguntava por que as pernas de sua mãe estavam trêmulas. Saberia ela de alguma coisa? O tremular das pernas seria a confissão óbvia de um segredo guardado? Nesse instante de dúvida irrespondível um menino vindo da rua entrou apressadamente no recinto e, correndo em direção a Antônio, entregou-lhe um pequeno papel rasgado de caderno. Era um bilhete, maldito bilhete! A dor no coração de Antônio foi aumentando, aumentando até que o terno empoeirou-se ao beijar-se repentinamente com o chão. Seu Goldofredo não teve forças para levantar-se da cadeira onde automaticamente despencara, muito menos para tirar o rapaz do tapete.
A igreja levantou-se num movimento sincrônico emitindo um sonoro “ooh...!!” Alguém, não lembro quem, chamou a ambulância que levou o rapaz ao centro cirúrgico mais próximo. Na verdade, Antônio tinha sérios problemas de coração. Já havia se submetido a três intervenções cirúrgicas.
No hospital, familiares, amigos e (fãs!) aguardavam notícias que rapidamente chegaram. Antônio morreu. Triste dia. Triste fim.
No bolso do terno de Antônio o bilhete de Fabiana: “Amor, eu sempre te amei.”
Antônio morreu e até hoje não se sabe exatamente se fora de amor ou de perversa ambiguidade.

Cólica de divórcio

Ana Rita estava decidida. Iria dizer naquela noite mesmo que o namoro estava acabado. Gostava de Felipe, admirava-o em alguns aspectos, mas definitivamente não era o homem que ela queria pro resto de sua vida. Já fazia certo tempo que demonstrava desinteresse pelo relacionamento, mas Felipe parecia estar cego. Era o rapaz mais apaixonado da cidade. Não havia sonho em que Ana Rita não estivesse além, é claro, de ser sempre a protagonista. Já havia esquecido o significado da palavra pesadelo e não precisaria jamais de Freud pra decifrar o que era apenas uma cópia autenticada de seu cotidiano. Era preferível que se lhe roubassem a alma a ver-se afastado de Ana Rita. Era o que possuía de mais precioso, sentia-se um homem feliz e realizado, e seria assim sempre que estivesse ao seu lado. Pronunciava o nome da garota quatrocentas e oitenta e nove vezes por dia, tanto nos úteis quanto nos inúteis. Andava meio maltrapilho. O dinheiro que conseguia com rios de suor, escapulia de suas mãos feito bolas de sabão, convertido em presentes e momentos de lazer junto à sua amada. A hipótese de uma separação surgia aos olhos de Felipe como a total demolição de sua estrutura humana, tornaría-se para sempre um tetraplégico emocional. Amava Ana Rita assim, mais do que a si, mas do que a tudo. Por ela tudo faria. Mas o trenzinho da alegria estava chegando à estação final. Ana Rita tomara três caixas de tranqüilizante e estava psicologicamente preparada para pôr um ponto final na estória.
A campainha tocou. O perfume que invadira todo o recinto acusava a presença do rapaz. Ana Rita, que estava sentada no sofá com as duas mãos sobre as pernas, olhando pro quadro à sua frente que retratava um pintor italiano com aquele bigode extravagante, levantou-se num pulo, respirou fundo e dirigiu-se à porta medindo os passos. Tocou na maçaneta, girou. Quando se viu frente a frente com o indivíduo, demorou três segundos e disse... Não, não disse. Convidou-o simplesmente para entrar. Sentados os dois no sofá, Felipe estranhava a frieza dos gestos e expressões de Aninha, como ele a chamava. Incomodado com aquele iceberg que se erguia segundo a segundo entre os dois, resolveu perguntar por que ela estava diferente, embora no fundo não quisesse ouvir a resposta.
Ana Rita decidira previamente que seria direta, em poucas palavras esclareceria sua posição. Olhou nos olhos de Felipe. Com lábios trêmulos que pareciam flâmula ao vento, mãos umedecidas e pernas quase trepidando, Ana Rita sentia um calor que lhe subia dos pés a cabeça. Queria falar, mas as palavras não saíam. Respirava dando pausas. Desviava o olhar pro bigode do italiano e depois pro namorado. Foi quando Felipe correu para a cozinha a fim de pegar um copo d’água. Teve medo de que a menina desmaiasse. Voltou e ela bebeu. Felipe já pressentia que se tratava de algo muito sério. Desconfiava de todas as possibilidades sem querer acreditar em nenhuma. Impaciente e confuso, Felipe já alterava a voz, quase suplicando a Aninha que falasse tudo de uma vez por todas. Pediu, mas se arrependeu. Seu coração gelou instantaneamente e ele não saberia sua reação diante da suposta fatalidade.
Felipe já estava apavorado, com o coração querendo precipitar-se garganta a fora, zonzo com o giro das paredes que não saíam do lugar. Ana Rita, agora mais assustada, não conseguia concretizar de maneira alguma o desejo reprimido. Foi então que resolveu adiar a decisão. Disse solenemente que não estava em condições de namorar nem de conversar naquela noite, pois estava com cólicas e forte dor de cabeça.
Decepcionado, Felipe voltou pra casa, mas no fundo sentia-se aliviado e até mesmo feliz. Afinal, Ana Rita, pensava ele, jamais teria vontade ou coragem de abandonar amor tão puro e verdadeiro.