Thursday, November 30, 2006

Paredes surdas

Neste instante prefiro a mudez. A incomunicabilidade dos planetas que congelam sozinhos no infinito das galáxias que explodem. Isto não me interessa. Só a brisa que sopra feito sopro de mãe a franja reta asiática da menina que corre no parque. Quero apenas ser ouvidos surdos de paredes brancas de quartos vazios, mas desejo ouvir dedos hábeis delicadamente no piano a criar sons que deixem nossos travesseiros fofos para um sono profundo de uma noite de estrelas. O discurso não me interessa. Quero apenas a melodia de dedilhadas numa harpa, equilibrando as pontas dos dedos dos pés calejados de uma bailarina. A história não me interessa. Quero ouvir o sonho real que brotou da doce vida das crianças. O futuro, agora não. Só um presente que seja mais que todas as estórias de todos os tempos e de todas as épocas. Não quero a promessa. Só a flor que desabrocha quieta e perfeita no jardim do quintal de minha avó. Não quero esta glória. Só o vento batendo em meu rosto na montanha que desço correndo ainda criança. Não quero caminhos. Só passos soltos e leves, vagabundos, em areia fofa de praia com lua.

Wednesday, November 29, 2006

Borboletas vermelhas

Sentiu que lhe penetrou profundamente o peito e, subitamente, despencou de joelhos no chão, apertando a mão direita no buraco que jorrava sangue. O céu estava límpido. Um vento leve, ameno percorria aqueles caminhos e o sol gigante e amarelo refletia-se no cristal dos olhos das crianças que passavam felizes segurando a mão de seus pais. Aquela bala era maldita. Só poderia ser. Que mal teria feito para merecê-la? Nenhum. Sangue de inocente derramado em vão... Ele simplesmente não entendia. E continuava a pressionar a mão sobre o buraco que parecia a cada segundo tornar-se maior. Sua mão, camisa e calça já estavam pintadas de um vermelho gosmento que respondia também, ironicamente, à luz do sol, tornando-se vivo e brilhante. Olhou para o chão e este seria o seu futuro mais próximo. Um cimento escuro, grosso, pisado por tantos pés, com resquícios de excremento de cachorros vira-latas e pombos. Uma sujeira impregnada, um chão mal varrido, um cheiro de morte. Lembrou da mãe. Ela estava na janela, segurando o queixo com as duas mãos e olhava para o terraço onde os filhos, quando crianças, divertiam-se sujos de areia, peito de fora, joelhos arranhados. Lembrou-se do pai. Um homem que mais parecia a própria enxada com a qual cuidava da terra. Magro, encurvado, velho, sem cor, rígido e sem graça. Olhou agora à sua volta e esqueceu do tempo. Não havia mais tempo porque todos os seus tempos e o do mundo fundiram-se numa sombra de existência que tomara, indevidamente, a liberdade de pertencer a todas as épocas e entender todos os sentidos, e a sorrir todos os sorrisos e a chorar todas as lágrimas que sua alma foi capaz de permitir. O tempo era a vida resumida em lembranças cortadas por artérias secas e embaraçadas com o colorido de borboletas e outdoors que reluziam dramaticamente diante de seus olhos já perdidos. Não haveria nem gotas piedosas de chuva para misturar-se aquele sangue quente que já cobria o chão e fazê-lo menos vermelho, menos verdadeiro, menos brilhante.
Uma fraqueza estremecedora o tomou de vez e, tonto, viu dez planetas com anéis de um azul translúcido girando ao seu redor sem parar com a ajuda dos bafos de ar quente que vinham das águas mornas do mar próximo. Viu figuras jamais vistas. Estranhos desenhos que nem pareciam o céu nem o inferno. Lembrou de poemas, de canções, de estrelas apontadas no céu, de cabelos soltos nos quais se perdia, e da lua sempre calada e branca. Lembrou-se dos pés pequenos e ligeiros, em sapatos engraxados, no caminho da escola. Lembrou-se das cruzes dos cemitérios sombrios e das luzes faiscantes do pisca-pisca de sua árvore de Natal. Quis matar o mundo. Quis salvar o mundo, entretanto, o chão era seu futuro mais próximo e de todas as formas retorcia-se para não ter que beijá-lo. As lembranças e devaneios então, agora se esvaiam, subindo no ar feito fumaça e rapidamente se apagando. Enquanto seu rosto desenhava a dor do fôlego de vida extirpado, seus músculos tornavam-se rígidos, contrafeitos, e suas pupilas despediam-se vagarosamente do esplendor de um sol intenso de um verão que se aproximava.
Passou-se a sombra, e dedos imediatos apontavam um corpo deitado no chão da praça. E ali, não era mais homem.
Não era mais nada.
Apenas o futuro, sujo e vermelho.

Saturday, November 18, 2006

Pedras de sol vermelho.

Gentilmente, pôs o fumo preto e amassado que se equilibrava entre seus dedos trêmulos no meio de seus lábios frouxos e molhados, e cruzou lentamente as pernas feito mulher, trazendo a bainha direita da calça social cinza e suja para a altura da canela magricela e engelhada. Uma tragada forte que lhe roubou as bochechas foi seguida por uma tosse rouca. Baixou os olhos hepáticos para o menino que apanhava pedras no chão. Era um final de tarde comum. O vento balançava o chapéu de palha do velho e fazia-lhe apertar os olhos, protegendo-se. Um vento que vinha do horizonte distante de um sol que caia já vermelho.Crianças corriam ao redor da praça. Ele tossia sempre. Uma tosse velha, áspera, rouca, embrutecida, cansada. O menino apertou as pedras na mão suja de areia e olhou para o velho. Engoliu uma porção de saliva de vez e arredondou os olhos. De longe, ouvia-se um cantar sincrônico de pássaros e um balançar preguiçoso de galhos e folhas daquelas árvores pesadas. A mão do menino ia ficando vermelha e as pedras já lhe deixavam pequenas marcas. A fumaça do charuto subia em forma de serpente e era letal. O menino ficou pálido. Veio-lhe o vulto da mãe, da igreja, da cruz, do cemitério e do céu. Respirou. As pedras agora caiam sem pressa uma a uma e já não havia mais dor em sua mão. O velho sorriu. Disse alguma coisa muito baixo pra si e deu outro trago. O menino virou-se levantando os cotovelos na altura do peito, contrapondo-se ao vento que assanhou seus cabelos e correu em passos leves e largos em direção ao sol vermelho que agora estava por trás da serra escura.
O chão da praça estava coberto por folhas secas e formavam um tapete. As pedras já não doíam nas mãos, a serpente se desfez na atmosfera e o velho fechara os olhos com a força do vento.
Um excremento verde, gosmento e minúsculo de um passarinho qualquer caiu no doce do menino que brincava do outro lado e misturou-se à calda de caramelo. Os olhos verde-claros de Beatriz tremeluziam à luz cansada do poste que iluminava a praça.
Um cachorro vira-lata, na flor da idade, morreu atropelado pelo carro do lixo.
E o velho tossiu novamente.