Wednesday, November 29, 2006

Borboletas vermelhas

Sentiu que lhe penetrou profundamente o peito e, subitamente, despencou de joelhos no chão, apertando a mão direita no buraco que jorrava sangue. O céu estava límpido. Um vento leve, ameno percorria aqueles caminhos e o sol gigante e amarelo refletia-se no cristal dos olhos das crianças que passavam felizes segurando a mão de seus pais. Aquela bala era maldita. Só poderia ser. Que mal teria feito para merecê-la? Nenhum. Sangue de inocente derramado em vão... Ele simplesmente não entendia. E continuava a pressionar a mão sobre o buraco que parecia a cada segundo tornar-se maior. Sua mão, camisa e calça já estavam pintadas de um vermelho gosmento que respondia também, ironicamente, à luz do sol, tornando-se vivo e brilhante. Olhou para o chão e este seria o seu futuro mais próximo. Um cimento escuro, grosso, pisado por tantos pés, com resquícios de excremento de cachorros vira-latas e pombos. Uma sujeira impregnada, um chão mal varrido, um cheiro de morte. Lembrou da mãe. Ela estava na janela, segurando o queixo com as duas mãos e olhava para o terraço onde os filhos, quando crianças, divertiam-se sujos de areia, peito de fora, joelhos arranhados. Lembrou-se do pai. Um homem que mais parecia a própria enxada com a qual cuidava da terra. Magro, encurvado, velho, sem cor, rígido e sem graça. Olhou agora à sua volta e esqueceu do tempo. Não havia mais tempo porque todos os seus tempos e o do mundo fundiram-se numa sombra de existência que tomara, indevidamente, a liberdade de pertencer a todas as épocas e entender todos os sentidos, e a sorrir todos os sorrisos e a chorar todas as lágrimas que sua alma foi capaz de permitir. O tempo era a vida resumida em lembranças cortadas por artérias secas e embaraçadas com o colorido de borboletas e outdoors que reluziam dramaticamente diante de seus olhos já perdidos. Não haveria nem gotas piedosas de chuva para misturar-se aquele sangue quente que já cobria o chão e fazê-lo menos vermelho, menos verdadeiro, menos brilhante.
Uma fraqueza estremecedora o tomou de vez e, tonto, viu dez planetas com anéis de um azul translúcido girando ao seu redor sem parar com a ajuda dos bafos de ar quente que vinham das águas mornas do mar próximo. Viu figuras jamais vistas. Estranhos desenhos que nem pareciam o céu nem o inferno. Lembrou de poemas, de canções, de estrelas apontadas no céu, de cabelos soltos nos quais se perdia, e da lua sempre calada e branca. Lembrou-se dos pés pequenos e ligeiros, em sapatos engraxados, no caminho da escola. Lembrou-se das cruzes dos cemitérios sombrios e das luzes faiscantes do pisca-pisca de sua árvore de Natal. Quis matar o mundo. Quis salvar o mundo, entretanto, o chão era seu futuro mais próximo e de todas as formas retorcia-se para não ter que beijá-lo. As lembranças e devaneios então, agora se esvaiam, subindo no ar feito fumaça e rapidamente se apagando. Enquanto seu rosto desenhava a dor do fôlego de vida extirpado, seus músculos tornavam-se rígidos, contrafeitos, e suas pupilas despediam-se vagarosamente do esplendor de um sol intenso de um verão que se aproximava.
Passou-se a sombra, e dedos imediatos apontavam um corpo deitado no chão da praça. E ali, não era mais homem.
Não era mais nada.
Apenas o futuro, sujo e vermelho.

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