Thursday, August 31, 2006

“É a vida”

O céu estava claro, com certeza, mais do que a consciência daquelas pessoas atrás das quais meus pés caminhavam numa tarde de um estação qualquer de minha infância. Eu deveria ter meus oito ou nove anos. Vinha subindo à rua a procissão. Uma imagem carregada pelas mãos daquele povo humilde e profundamente religioso, no meio dos quais eu era induzido a sofrer um processo de assimilação cultural. Eu, ingênuo como qualquer outra criança, não sabia o significado nem do santo, nem da procissão, muito menos aonde eu iria parar subindo e descendo ruas atrás de vozes e arrastados de pés num tom melancólico e sofrido. Havia muitas senhoras, com caras de “é a vida...”. Lembro de uma vizinha minha, que, aliás, já está em outra dimensão, que dizia peremptoriamente que o inferno era aqui. Eu estranhava tamanha afirmação e, apesar de não ter idade suficiente para contestar crenças e teorias, até porque se tratava de um conhecimento de uma anciã e, conhecimentos de anciãos sempre são respeitados, eu simplesmente não concordava, fundamentando minha convicção em todo um arcabouço teórico construído pelo minha vivência e imaginação pueril. Um mundo onde eu tinha o prazer de brincar todos os dias e fazer quase tudo aquilo que eu queria estava longe de se configurar um inferno, até porque no inferno tem fogo e enxofre e eu não lembrava de ter sofrido nenhuma espécie de queimadura até aquele momento de minha vida. Minha ex-vizinha, além de ter elaborado essa teoria durante sua vida, também acreditava que na lua morava São Jorge. Em sua casa, aliás, tinha um quadro desse santo pendurado na parte central de uma parede de seu quarto. Ela olhava pro quadro e depois, olhando pra mim, dizia sussurrando com voz de mistério: “Na lua mora São Jorge!”. Como eu era criança e não sabia que às 23 horas, 56 min e 31 seg. (horário de Brasília) do dia 20 de julho de 1969 Neil Armstrong havia pisado na lua com seu pé esquerdo tamanho 41 e não constatara, por incrível que pareça, a presença de nenhum dragão, eu era levado a erguer os olhos ingênuos ao céu em noites em que a lua estava cheia e luminosa. Apesar de ter verificado em alguns momentos desenhos estranhos que se formavam ali dentro, confesso que, por mais criativa que fora minha imaginação, nunca fui convencido de que a velha tinha razão. Razão, a propósito, foi uma virtude que passei a partir daí a dissociar das pessoas idosas. Era preciso distinguir entre velhos sábios e aqueles que gostavam de contar muita estória.Mas, voltando à procissão, eu caminhava olhando pro santo, que ora pendia pra um lado, ora pro outro, carregado por mãos vacilantes, já sem forças, num trajeto que parecia não ter mais fim. Seguia, a convite de um amigo meu da escola, cuja mãe era devota. Era preciso seguir a procissão e, enquanto os velhos cantavam e olhavam pro céu como que pedindo uma vida menos dolorosa, eu me surpreendia com a aglomeração de pessoas que quase não se conheciam, quase não se falavam, talvez nunca se houvessem vistos uns aos outros, mas estavam ali, compartilhando daquela fé, daquele sentimento, como uma família provisória de rua, ligados por algo muito forte, abraçados aos seus terços e crucifixos, sempre com aqueles olhares pesados de “é a vida”. E assim, foram alguns dias de minha infância, no interior do nordeste, agreste pernambucano, na cidade de Caruaru, quando o mundo que eu conhecia não ia muito além de estórias como essas.

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