Sunday, July 27, 2008

Primavera francesa

Um vento frio de início de primavera que passeava pelo lado de fora decidiu, abruptamente, já que não lhe restava mais nada a fazer, penetrar em nosso ambiente devidamente restrito. Um frio quase gélido, a deslizar suavemente e sorrateiramente por entre nossos corpos - quase - imóveis. Minha língua se deliciava em porções de sorvete que eu lhe oferecia num ato generoso e ela ficava exuberante com isso. Se tivesse rosto, estaria fazendo aquela cara de criança quando recebe presente, com um sorriso largo e braços abertos. Ao mesmo tempo, meus olhos se atiravam ao colorido instigante de todas as fotografias e signos lingüísticos que compunham as capas de revista. Passear os olhos sobre capas aglomeradas numa loja é sempre um exercício de intenso estímulo sensorial. Destacando-se aí as mulheres bonecas, sempre perfeitas. Há, de fato, uma competitividade gritante entre elas. Se Éris, a deusa encrenqueira da Guerra de Tróia, surgisse por acaso ali para oferecer seu pomo de ouro “à mais bela”, penso que todas elas saltariam de suas respectivas capas e se engalfinhariam ali mesmo, ainda que isso lhes custasse o triscar de um cílio a borrar a maquiagem de suas bochechas rosadas.
Mas não há apenas estímulos puramente sensoriais. Podemos sentir, sem dúvida alguma, cócegas no intelecto e essa experiência é um tanto divertida pra mim e pra todos aqueles que têm, por algum motivo até hoje não explicado, essa forte inclinação irracional para a racionalidade da leitura. Afinal, justifique-se, não é em qualquer lugar que achamos reunidos, literalmente, no mesmo tempo e espaço figuras ilustres como Freud, Marx e Aristóteles, sentados generosamente em prateleiras bastante incômodas à espera do próximo curioso que irá dirigir-lhes em pensamento questões existenciais que eles já morreram de pensar. Mas podemos simplesmente reunir dois fenômenos fantásticos, como, por exemplo, bater um papo com Freud (mesmo num divã improvisado) e logo depois alojar o nosso “id” numa prateleira que trate de questões como: “seja feliz no casamento”, “como se livrar de sua sogra”, ou “como ficar rico em cinco dias”.
Logo ali do outro lado, pude ver uma adolescente branca feito a boneca de porcelana de minha avó e magra feito um lápis, sentada numa pequena cadeira, extremamente concentrada, diga-se, e que se inclinava sobre um livro cujo título era “antiga arte hindu do prazer e do êxtase”. Absolutamente estática, apoiando seu queixo fino em seus dedos polegar e indicador direitos, mergulhava seu olhar, através de suas límpidas e finíssimas lentes oculares, naquelas figuras geométricas, reveladoras dos métodos mais empolgantes de nosso exercício vital.
Observe-se que ainda não havia chegado o verão e corria um vento quase gélido entre nossos corpos quase imóveis.
Foi quando o sorvete acabou e me livrei do ar-condicionado.

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